O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Quando a cidadania fica refém da autoridade

Relato de acontecimentos que não foram notícia nos jornais

16 Janeiro 2009, zona pedonal de Almada. Ontem fui relembrada pouco suavemente de que o inimigo número um de qualquer cidadã activa não são os problemas ambientais ou mesmo sociais: é, antes de mais, a intolerância. Convidada para participar numa acção de celebração e defesa da nova zona pedonal de Almada, contestada um pouco por todos por razões contraditórias, enfiei os patins num saco, fui buscar a minha filha à escola e apanhei comboio e metro para chegar ao, entretanto, infame local. Estava a decorrer um lanche popular, um grupo de pessoas jogavam jogos tradicionais e de vez em quando tocava uma banda de samba. Outros distribuíam folhetos aos condutores, que achei surpreendentemente numerosos. Basicamente está sempre um carro ou autocarro a passar, poucos respeitam o limite de 10km e é preciso muita cautela para não ser atropelado.


Mas, apesar do trânsito me suscitar críticas à câmara e à polícia por não o controlar, como sabia que estas entidades já tinham sido abordadas, tratava-se agora de sensibilizar os transeuntes e ganhar mais massa crítica para defender uma zona pedonal mais verdadeira. Em nenhum momento havia mais de 20 pessoas concentradas no local, metade ou mais mulheres, várias crianças, e ainda idosos que assistiam aos festejos.


Tudo correu bem durante duas horas, com condutores mais ou menos sensíveis à questão e conversas perfeitamente cívicas com os que passavam, incluindo pais da escola da zona, condutores de autocarros e agentes. Tudo correu mal quando a dada altura fica evidente a presença de um corpo de intervenção com oito elementos a observar e comentar a banda samba que inicia uma marcha à volta da praça, inevitavelmente atrasando o trânsito que, para além de ser denso, fazia ouvidos de mercador ao limite de velocidade.


Quando se acumulam três carros atrás da banda, onde a minha filha de 8 anos estava muito feliz a tocar um tambor, a polícia de choque resolve fazer uma carga sem aviso. Os agentes atiram-se à dúzia de musicantes rodeados por transeuntes e começam a empurrar com extrema violência. O facto de haver pessoas a filmar e fotografar incendiou-os ainda mais. Foram para o chão, entre outros, uma mulher com bebé ao colo e uma senhora com mais idade que acabou por ficar com um traumatismo craniano. Um rapaz franzino que tentou proteger a mulher com bebé levou uma cacetada que lhe abriu a cabeça (levou 8 pontos). Outra pessoa que estava a filmar e não quis entregar a câmara foi detida e arrastada para a carrinha.


A polícia começou a apagar as fotos das pessoas que estavam a registar o acontecimento e foi aí que eu levei um golpe violento (de bastão) na mão que segurava a câmara. Por pouco não me partiu os dedos mas deixou-os em mau estado, ficando a minha câmara para a história. Problema do polícia resolvido. Durante 15 minutos muito tensos nem sabia da minha filha, que felizmente é forte e corajosa e fugiu dos polícias enraivecidos, refugiando-se com perfeitos estranhos. A cena só acalmou com a chegada de mais polícias... de trânsito. Estes, como seria normal, focavam a sua atenção na população assustada e indignada, chamaram ambulâncias e trataram de acalmar as pessoas. Um deles passou 10 minutos a sossegar a minha filha, que chorava convulsivamente, evitando assim, esperemos, que ela passe a ter medo de fardas. Eu fui atendida, ao que me parece, por um polícia à paisana, que me atou os dedos e me levou à ambulância.


Fui para o hospital com o rapaz do golpe na cabeça, mas não sem termos levado com um rio de insultos dos polícias de intervenção que pretendiam justificar a sua acção. Os comentários foram tão baixos que me custa repeti-los. E não pararam ali. Ainda detiveram uma senhora dos seus pelo menos 70 anos e que nada tinha a ver com a acção, só protestava a actuação da polícia. O rapaz do golpe foi detido no hospital por cinco agentes, por injúria (tinha pedido ainda no local a um agente para se identificar, depois de ter assegurado que se identificaria também. Só o comandante da 2ª divisão acabou por se identificar, mas não deu mais que este título). Meio zonzo, acabado de ser suturado, o pobre rapaz teve que se sujeitar a ser revistado, algemado e levado, com a cara aterrada, para a esquadra do Pragal. Devia ser muito perigoso para justificar tanta despesa. Ainda me pediu para ligar à mãe a dizer que hoje ia ficar com amigos, para ela não se enervar.


É assustador pensar que em Portugal se magoa peões para defender automobilistas que, trancados nos seus panzerwagens, não corriam perigo absolutamente nenhum. Ainda mais custa realizar que a polícia portuguesa não sabe ler situações, não distingue uma dúzia de jovens, mulheres e crianças rodeados por idosos e cujas armas eram tambores e flyers, de um grupo de terroristas com caçadeiras. Imaginem agora todas as possíveis situações intermédias. É legítimo não concordar com os argumentos dos cidadãos que resolveram celebrar a zona pedonal. Apresentem outros, discutam, cheguem a novas conclusões. Mas exprimir a discordância e o desconhecimento de eventos coloridos, tão comuns noutras cidades da Europa, com violência misturada com um desprezo que roça o ódio, é descer às profundezas da ignorância. Coloca o relógio 50 anos para trás. Fere-nos como civilização.


Apesar de ser fácil desanimar quando se é envolvida numa situação de tão profunda injustiça, fácil também ganhar medo em exprimir a nossa opinião. Eu recuso-me a ser vítima da intolerância. Por isso escrevo este post, partilhando a má experiência com quem quiser ouvir, apresento as queixas que tiver que apresentar e sigo caminhando, com a mesma intenção de ser útil aos outros e de desejar a sua e a minha felicidade.


Lanka Horstink

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