Uma comédia em três actos
Acto I
Os Inspectores da Câmara
Naquela manhã, estavam lá duas pessoas. Amigos que precisaram de guarida e que se preparavam para continuar a sua vida. Quando saíram, foram vistos e catalogados na já recorrente categoria do mau aspecto. Deixaram-nos seguir sem uma pergunta. Se nos bateram à porta ou não ninguém sabe. A casa estava já vazia.
O que se sabe é que bateram à do vizinho. Primeiro, apenas um, como que a medo, depois os outros dois para, tudo indica, completar o ramalhete. Todos vestidos a rigor, todos saídos dum yaris cinzento com logótipo da Câmara Municipal do Porto (CMP), todos a darem pelo pomposo título de inspectores da autarquia. Traziam, em papel timbrado, um ofício originado, diziam, numa queixa anónima de moradores da Praça do Marquês de Pombal. Nessa queixa, dir-se-ia que, no interior do 167 dessa praça, se desenvolviam actividades ilícitas, nomeadamente tráfico de estupefacientes e prostituição. Vinham, disseram, com a intenção de emparedar a casa.
Depois do que deve ter sido uma conversa altamente elucidativa com o vizinho, na qual não faltaram o “ainda agora saíram duas pessoas com mau aspecto” e o “nas últimas três semanas, temos vigiado a casa regularmente”, para além da sacramental pergunta “mas eles estão na casa legalmente?”, os inspectores partiram sem falar com mais ninguém, sem deixar recado aos legítimos ocupantes da casa, sem a emparedar e com o contacto de “legítimo proprietário” do edifício, o qual nunca chegaram a contactar.
Acto II
O Gabinete do Munícipe
A ideia de inspectores da câmara municipal a tomar diligências por causa de queixas cujo âmbito não abrangem pareceu-nos absurda. Tentamos, portanto, racionalizá-la, no sentido puro de lhe dar uma razão. O melhor que conseguimos foi que, como se tratava duma queixa anónima, a CMP tinha decidido investigá-la para aferir da sua credibilidade antes de a fazer chegar a quem de direito, no caso, a polícia. Como achamos que foram demasiado lestos na decisão de emparedar a casa e também na de a anular e como, enfim, pensamos que uma denúncia anónima e uma conversa informal não são meios suficientes para uma decisão ponderada, decidimos ir, nós próprios, falar com a autarquia, para ver em que é que podíamos ajudar.
O Gabinete do Munícipe é assim uma espécie de Loja do Cidadão, arejada, moderna, civilizada. O funcionário, talvez colaborador, que nos atendeu era jovem, conhecedor das possibilidades das hortas e dos conceitos básicos de administração pública, solícito, eficaz e saía às 17h00. Não lhe pagavam à peça e tinha, respeitando esse limite, todo o tempo do mundo. Vasculhou por todo o lado, em Marquês de Pombal 167, só na Praça, apenas em Marquês e em Pombal, chegando ao desespero de procurar por todas as ocorrências acontecidas em ou relacionadas com a Praça do Marquês de Pombal, Porto. Nem uma envolvia o número 167. Nada. Nem queixa anónima, nem inspectores, que a Câmara, aliás, não tem, chama-lhes fiscais e não lhes dá trabalhos de polícia criminal.
Terá sido um erro de audição do vizinho, aquilo de serem inspectores e não fiscais. E tudo o resto não terá passado de uma alucinação, com a excepção, talvez, do yaris cinzento com logótipo da Câmara Municipal do Porto, típico, segundo nos foi dito no Gabinete do Munícipe, da frota municipal.
Acto III
O yaris cinzento com logótipo da Câmara Municipal do Porto
Duas noites mais tarde, dois de nós separavam-se à porta da casa. Uma entrava e o outro seguia para o Metro, logo ali, do outro lado da rua. Ao atravessar... lá estava ele, o yaris cinzento com logótipo da Câmara Municipal do Porto. Dirigiu-se para lá, sem saber bem o que fazer ou dizer quando chegasse. Felizmente que isto aqui é como no cinema e, para lhe poupar embaraços, o yaris cinzento com logótipo da Câmara Municipal do Porto arrancou lesto perante tal aproximação. Foi visto mais vezes nas redondezas da casa de então para cá.
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