O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 4 de agosto de 2007

Basta de cerejas, que é feito do bolo?

Debate na CasaViva
As palavras são opacas. Olhando para o mote do debate, ninguém poderia dizer com exactidão o que se iria passar naquela noite, na Casa Viva. De uma poesia tocante, a pergunta Basta de cerejas, que é feito do bolo? não deixava, de facto, transparecer muito. Sabia-se, apenas, que era a data em que se festejava o 33º aniversário da primeira ocupação popular de uma casa devoluta em Portugal (28 de Abril). Para 3 dias mais tarde, estava marcada a entrega do Rivoli a La Féria, coisa nunca oficialmente confirmada nem desmentida e que acabaria por acontecer apenas cerca de mês e meio mais tarde. No final, saberíamos que não se chegou a falar de ocupação e que as questões relacionadas com o Rivoli só se afloraram muito lá para o termo da conversa.

As palavras fazem-se transparentes. João Teixeira Lopes (sociólogo) pega em dois conceitos aparentemente próximos e estilhaça-os, destruindo, pelo caminho, a estrutura que conforma a vida cultural do país nos nossos dias. Defende a democracia cultural por oposição à sua democratização. Esta, presente nos discursos dominantes da actualidade, é imposta de cima para baixo e de fora para dentro, na lógica de Um Estado, Uma Nação, Uma Cultura e acaba por provocar reacções diferentes nas várias áreas onde é implantada. Socorreu-se de uma notícia do “Público” para demonstrar que se pretende uniformizar até as manifestações dos espectadores perante uma produção cultural, através da criação duma espécie de manual de civilidade aplicado à cultura, ao melhor estilo do século XIX, quando também se achou necessário impor comportamentos públicos à burguesia recém endinheirada. A democratização cultural parte, assim, do princípio da menoridade das pessoas quer levando-lhes a cultura que não lhes diz respeito quer explicando-lhes onde e como rir ou bater palmas.

Deve-se, portanto, contrapor a esta imposição um acto de democracia, dando a possibilidade de escolha entre o leque do que se conheça, partindo daí para a familiarização com a novidade, de forma a que se torne conhecida, num círculo virtuoso que só é potenciado se a cultura for encarada como serviço público. E será o caminho estreito que se afasta quer do populismo quer do voluntarismo que esta atitude deverá percorrer. De maneira a que não se dê às populações apenas aquilo que elas querem da forma que o querem, mas que também não existam vanguardas iluminadas que indiquem qual deve ser o gosto dominante. A democracia cultural tem, então, que ser “a forma de discutir padrões e conseguir consensos provisórios através da acção presente nas comunidades”, explica o sociólogo. “A ideia dos consensos provisórios é importante para que se encare cada ponto de chegada como um novo ponto de partida”, diz ainda, adiantando que os perigos do populismo e do voluntarismo se combatem “substituindo a acção cultural pela interacção mútua”.

As palavras, afinal, são mentirosas. Eduarda Dionísio (professora), com o seu humor humilde, recusa formas que mudaram de conteúdo e diz-se perdida no meio de significados que tinha como diferentes. Gostaria de “banir das nossas conversas as palavras cultura e democracia”. Mais para a frente, foi adicionando outras a este seu index de expressões inquinadas pelo sentido que hoje lhes dá a maioria, imposto pela comunicação social “que resta”, pelo governo, como emanação do Estado, e suas instituições e pelo mercado. Quem fabricou estes novos significados não foram, então, os artistas, nem os centros institucionais do saber, nem as populações ou as associações. Foi, sobretudo, o mercado.

De uma “necessidade de fazer, a cultura transformou-se num conjunto de eventos”. Que “só são cultura se tiverem visibilidade... quanto mais visibilidade, mais cultura são. O itinerário desta cultura, nos últimos 30 anos, tem sido um itinerário linear e ascendente de eventos festivo-comemorativos com que nos temos ido conformando”, afirmou a professora, antes de nomear alguns, como a 17ª Exposição, a Europália, Lisboa Capital da Cultura, Expo 98, Porto 2001... A Cultura de hoje é considerada em termos de oferta e procura, investimentos, subsídios, donde, nas palavras de Eduarda Dionísio, “nasce um rosário de palavras e acções como marketing, património, dossier, parceria, co-produção, protocolo, outdoor..., o que tem pouco a ver com cultura como possibilidade de as pessoas se libertarem do seu dia a dia e de se afirmarem como pessoas verdadeiras”

A cultura de hoje será, portanto, nada mais do que uma vitória política, tendo-se transformado em culturalismo, que é uma ideologia. Visa, em última análise, a “substituição do cidadão autor em cidadão consumidor”. Um cliente amorfo do que lhe dizem que deve gostar, para quem, depois de despido das suas raízes e de qualquer tipo de história, qualquer coisa se pode tornar num evento. Os conceitos dela são, claro, outros. Para ela, a cultura é “um instrumento contra qualquer coisa e não um instrumento de integração”. Deverá ser a afirmação da sensibilidade de cada um, o resultado de uma vontade interior de intervir, de fazer, realizar, transformar o que nos rodeia. Formas de viver relacionadas com o local e não com uma amálgama de conceitos ditos globais. Luta consciente por alterações organizacionais. “Tal como está hoje definida, a cultura não é onde nos devemos mover para mudar o mundo”, finaliza Eduarda Dionísio.

As palavras são livres. O público, e seriam um pouco mais do que 30 pessoas, solta-se e impõe as suas inquietações, lançando pistas verdadeiramente relevantes para discussões futuras. Ouvem-se experiências e desabafos, pessimismos e esperanças. Histórias de mobilizações por móbeis fúteis e relatos de abandono de causas nobres. Aventuras nas avenidas da cultura institucionalizada e discussão sobre ruas alternativas.

As palavras são precisas. Mesmo para o fim, as perguntas que foram para trabalhos para casa tinham a ver com a necessidade cada vez mais urgente que a generalidade dos convivas sentia em conseguir fazer voltar as definições de João Teixeira Lopes e Eduarda Dionísio para a realidade quotidiana das populações. Como conseguir fazer ouvir vozes agora minoritárias num mundo cheio de gritos. Como dar visibilidade às vontades emancipadoras no meio da cegueira provocada pelos néons. Uma das respostas possíveis parece-me ter sido dada ainda antes do debate, com um concerto de Diana e Pedro, onde sonoridades reconhecíveis eram travestidas e onde as palavras escolhidas traziam novas formas de ver as coisas e de as problematizar. Será esse um dos caminhos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bela reflexão a de Eduarda Dionísio! arregaçar mangas a continuar a fazer cultura.
albah