O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 4 de agosto de 2007

A informação é mercadoria?

Convite à reflexão sobre o que andamos a ler, ver e a ouvir
No dia em que Durão Barroso deu início à rentrée política da Comissão Europeia, em 2006, o espaço da cerimónia, na Quinta da Beloura, em Sintra, foi classificado de “sumptuoso” pelo jornalista estagiário encarregado de fazer a cobertura do assunto para um jornal de referência português. O subeditor não gostou e cortou o adjectivo. O jornalista acatou.
Situações como esta acontecem diariamente em todas as redacções, com estagiários ou não, por este ou por aquele motivo mais ou menos relevante. Neste caso, o motivo era apenas poupar Durão Barroso, e consequentemente a Comissão Europeia, “vinculando-os a um cenário que, mais que sumptuoso, era verdadeiramente extravagante”, relata Renato Teixeira, o dito jornalista estagiário. Este é o mais simples dos quatro conflitos redactoriais que expõe em “Ardinas da Mentira” e que exemplificam, a partir de episódios aparentemente quotidianos, onde começa o “amestramento da acção jornalística”.
“Vivemos num tempo em que a informação se transformou em mercadoria, e, como mercadoria, obviamente sujeita aos condicionalismos e às regras de mercado que regulam o sistema económico”, acusa o autor. “Ardinas da Mentira” é um trabalho académico de licenciatura em jornalismo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi escrito com o objectivo de contribuir para a organização de uma crítica actualizada aos meios de comunicação, motivando debates entre pessoas empenhadas na produção independente e alternativa de conteúdos.
Algo do género aconteceu na CasaViva, na noite de 27 de Abril, em que a apresentação da obra provocou um empolgado debate, de mais de duas horas, sobre a manipulação actual dos meios de comunicação social.
“Não há crise no jornalismo”, tendo em conta os grandes negócios que sustenta, argumentou Rui Pereira, um dos participantes mais entusiásticos da noite, jornalista há mais de metade da sua vida, muitas horas das quais a procurar e a dar informação sobre o País Basco e a sua luta pela autonomia, a serviço do “Expresso”. “A maior parte dos jornalistas que conheci são boa gente”, afirmaria então, como dias depois, dois pisos acima, num outro debate sobre o mesmo assunto, particularizado na guerra do Iraque.

“Os Ardinas da Mentira” é um livro “difícil, raro, precioso e preciso”, afirmou. Difícil porque “não serve facilitismos”, fundamentando o pensamento crítico; raro pelo “desassombro da crítica”; precioso porque é um “instrumento de conhecimento”; preciso porque “não tem pretensão de encerrar o debate que abre”.
Para nenhum dos debates promovidos com o lançamento da obra, o Bloco de Esquerda, de que Renato Teixeira é militante, abriu as portas das suas moradas. A normalização do discurso em todas as áreas limita a imprensa alternativa, afirma Renato. Inclusive por parte das esquerdas. Refere o Indymedia português, que acha muito aquém dos homólogos doutros países. Se hoje houvesse censura institucionalizada, esta teria muito pouco para fazer, suspeita. Cerca de 80% das notícias são feitas pelas agências de informação e comunicação. Ou seja, o que existe de investigação é absolutamente residual, pelo que o jornalista “é uma espécie de dançarino atrás do papa”. Nos meses de estágio num diário, uma conferência de imprensa correspondia a uns invariáveis três mil caracteres. Hoje, diz que não faz jornalismo onde trabalha. E, no entanto, trabalha como jornalista numa revista semanal, onde supostamente há mais tempo para produzir a informação.
A trabalhar numa revista concorrente, Miguel Carvalho não se queixa do mesmo. Aborda é os mecanismos a que uma publicação semanal recorre para retomar uma notícia que já não o é, a que um jornalista recorre para vender uma notícia ao editor. Tem de ter algo de novo, ou sob uma perspectiva diferente. Apresentar o assunto partindo do particular para o geral é o estilo preferido e um tanto normalizado da última década. Diferente da época em que a revista do “Expresso” era grande, recorda Rui Pereira.
Hoje como então, quando se procura descodificar a informação, raramente se tem em conta os “mecanismos subtis, incorporados pelos próprios jornalistas, além dos mecanismos de censura evidentes”, referidos por José Soeiro. Como representante do BE ou a título particular, foi quem lançou o debate. “A realidade é o que aparece na televisão”, ironizou.
Mentiras que “nos habituamos a consumir”, que “aniquilam a fantasia”, acrescentaria Renato Teixeira. “Perguntem-se qual o interesse que mais de dois terços da humanidade têm naquilo que vêem?”, questiona no livro.
“O jornalismo está menos capaz que ontem”, precisa de “refundação”. “O que temos hoje, como tal, é a indústria de uma informação antibiótica, normalizada por critérios que cumprem rigorosos padrões de classe, e destinada a reforçar nas consciências a insuperabilidade da nova ordem mundial e com ela a ditadura da economia de mercado.”
“O que é feito dos jornalistas e do jornalismo que outrora representaram algo de emancipador nas nossas vidas”, reclama José Mário Branco, no prefácio de “Ardinas da Mentira”. Para o músico cantor, os jornalistas “não podem dizer que não sabiam, não podem dizer que não sabem como fazer, nem podem dizer que não podem fazer nada.”

“Ardinas da Mentira”, ensaio editado este ano pela Dinossauro, organiza-se em torno de três ferramentas centrais: análise de conteúdo aos acontecimentos que marcaram a cimeira do G8 de Génova em 2001; observação participante num jornal de referência; e análise teórica.
É, segundo o autor, “um duplo convite à reflexão sobre o que andamos a ler, a ver e a ouvir, as suas intenções, os seus efeitos, os seus ardinas”. Mensageiros actuais da mentira orquestrada do pensamento único, que – citando Rogério Santos – aprendem a lidar “com a prática jornalística [que] favorece geralmente os interesses das fontes com autoridade e peso, em especial as que se situam no interior do aparelho governamental”.

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