O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 4 de agosto de 2007

Manifs sim, se cheirosas e bem vestidas

25 Abril 2007, em Lisboa
No dia em que Cavaco apelou à capacidade de mobilização e de indignação da juventude, algumas pessoas, entre elas muitos jovens, decidiram mobilizar-se e indignar-se contra o ressurgimento do fascismo político e a vitória desse outro fascismo, de cariz mais económico, que condena todas as sociedades a organizarem-se sob os ditames da fase actual do capitalismo, habitualmente conhecida por neo-liberalismo ou economia de mercado.

Para depois das comemorações oficiais do 25 de Abril, em Lisboa, foi convocada, por pessoas cansadas do ritual festivo com que actualmente se assinala cada aniversário da revolução, uma manifestação “anti-autoritária, anti-fascista e anti-capitalista”. O percurso, pautado por palavras de ordem bem mais combativas do que as que se tinham gritado um pouco antes, iniciou-se por volta das 18h30, na Praça da Figueira, e acabou uma hora mais tarde, no Largo de Camões. Apesar de ter sido levada a efeito sem autorização, a marcha decorreu sem incidentes, nem por parte dos manifestantes nem por parte do impressionante aparato policial que a escoltou.

Uma vez no Largo de Camões, uma parte considerável das pessoas sentiu-se feliz por ter sido capaz de exercitar esse direito que é o de manifestação. Tão fundamental ele é, que se torna ridículo que implique uma autorização. Vincando esse ponto de vista e gritando bem alto que o estado actual do mundo é insuportável e que a solução não passa por perspectivas autoritárias ou nacionalistas, essas pessoas voltaram, creio que sorridentes, para casa.

Um número menor de indivíduos achou, no entanto, que faltava fazer algo mais e decidiu dirigir-se à sede do Partido Nacional Renovador (PNR), na Rua da Prata, descendo a Rua Garrett. Nessa altura, a marcha era constituída por um número entre 60 e 100 pessoas, onde se destacava um núcleo de cara tapada. No caminho, que seguiu pela Rua do Carmo, fizeram pichagens e atiraram bolas de tinta a várias montras. Nada havia sido partido. Nenhuma agressão havia sido feita.

A determinada altura, dois ou três manifestantes pararam para escrever numa parede: “O 25 de Abril passou mas a lei do bastão continua”. Um grupo de polícias à paisana cercou os autores do grafiti para os deter, mas foi, ele próprio, cercado por outra malta que tinha ficado por perto para o que desse e viesse. Os agentes largaram os que tinham agarrado, sacaram dos bastões extensíveis e recuaram em grupo. O resto da manifestação, que já tinha passado o elevador de Sta. Justa, apercebendo-se do que se estava a passar, subiu a Rua do Carmo a correr. As carrinhas azuis abriram as portas, tanto na parte de cima como na parte de baixo da rua, os agentes saíram a correr e a bater, no que foram imitados pelos infiltrados à paisana na manifestação. Como a resistência era mínima, a polícia passou ao espancamento dos manifestantes e de toda a gente que se atravessasse no caminho, incluindo alguns turistas. Onze pessoas foram presas, tendo algumas delas sido agredidas depois de detidas.

Este é, em traços gerais, o retrato do que se passou no fim da tarde do dia 25 de Abril de 2007, na baixa de Lisboa. Nesse mesmo dia, bastante mais cedo, a polícia tinha-se apressado a defender um cartaz do PNR de tomates atirados por alguns dos presentes nas comemorações oficiais do 33º aniversário da “revolução dos cravos”.

A crítica à atitude, às acções e aos eventuais objectivos dos manifestantes é legítima, mas rebatível de um ponto de vista ideológico. Já o questionamento da acção policial, se também é legítimo, parece-me muito menos defensável, mesmo se a olharmos pelos olhos da ideologia que a forma, a do Estado de direito democrático. Senão vejamos...

A manifestação não estava autorizada. No entanto, a polícia nunca exigiu, ou pediu sequer, que desmobilizasse. A polícia carregou e não parou nem perante a ausência de resistência. Por outro lado, começou a bater antes de saber da existência de alegados cocktails Molotov. Estes, a existirem, nunca podem, portanto, ser apresentados como justificação para carga policial. A polícia refere montras partidas, agressões a transeuntes e chega mesmo a utilizar a expressão “rasto crescente de destruição. Ou seja, a polícia mente descaradamente. Alega, ainda, a existência de um very light. Os manifestantes corroboram, mas afirmam que veio do lado das “forças da ordem”. Onze indivíduos foram detidos por volta das 20h00. Até 17 horas depois, o único alimento que lhes foi fornecido foi pão e leite pelo pequeno-almoço. Lembremo-nos que a carga começou por causa dum grafiti e, eventualmente, também por causa de bolas coloridas atiradas a algumas montras. A polícia, tanto quanto podia saber naquele momento, enfrentava um exército munido de tinta.

Por muitas razões de queixa que se pudesse ter dos manifestantes, a polícia dum Estado de direito democrático tem que precisar de muito mais para levar a cabo uma carga tão brutal. Claro que esse mesmo Estado diz que não, desde que, depois, haja o respectivo inquérito. De qualquer forma, o governo, pela voz do secretário de Estado José Magalhães, já afirmou que esse exercício vai redundar na absolvição das forças policiais e na adopção da versão oficial da “utilização da força necessária”. Não considerou, por exemplo, que, para valer a explicação da polícia, terá que saber do juiz porque é que decretou a medida de coação mínima a um bando de gente perigosa que trazia consigo armas ilegais. Será também necessário saber o porquê da apreensão de “diverso material anarco-libertário”, quando a sua posse não é proibida.

Tudo isto me leva a pensar que a polícia espancou aquelas pessoas naquele fim de tarde tão especial, não pelo que elas fizeram, mas por serem quem eram. Estava-se na ressaca dos raids às casas de elementos da extrema direita. Talvez a polícia tenha pensado que era melhor atacar também os arqui-inimigos dos fascistas, os anarquistas, e, assim, conseguir uma espécie de anulação de forças em que nenhuma das partes se fica a rir da outra. Ou talvez tenha sido apenas a forma de alguns simpatizantes do PNR que, aparentemente, trabalham nas forças de imposição da ordem se vingarem.

Independentemente do carácter especulativo do parágrafo anterior, o que não se pode negar, parece-me, é que se tratou da velha táctica da imposição do medo que garanta o esmagamento duma contestação que não cabe no sistema. Acontece aos camionistas quando bloqueiam estradas ou pontes, acontece aos populares que se organizam de forma mais ou menos espontânea, acontece aos estudantes que se opõem mais empenhadamente às novas leis sobre o ensino, acontece aos ciganos que se recusam a ser despejados, acontece aos trabalhadores que ultrapassam os sindicatos e acontece aos cidadãos com uma crítica mais profunda da organização social e económica actual que não se mobilizam através dum partido ou duma ONG. Porque a contestação é como as manifestações... é legítima, mas tem que ser autorizada, ordeira, bem educada e, de preferência, cheirosa e bem vestida.

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