Sobre o manifesto de Mudar de Vida
Assim sendo, afirma o manifesto com clareza, a acção tradicional da esquerda já não funciona. Será preciso inventar novas formas de luta, com a lucidez de querer participar em batalhas por interesses imediatos e objectivos parcelares, na esperança de que potenciem a união e a organização para o que chamam “lutas superiores”. Mas também com o cuidado de não se metamorfosear em “comissão de melhoramentos”, ou seja, sem nunca esquecer a guerra no seu todo, sem nunca perder de vista a vontade última de transformar a sociedade.
Por fim, não se deve deixar sem referência o facto de os autores do Manifesto renegarem a via eleitoral como meio para a derrota do capitalismo, chegando mesmo a dar crédito à “abstenção activa”, coisa, cremos, nunca ouvida fora dos círculos libertários.
Mas o Manifesto não é, a nossos olhos, um mero acumular de prazeres. Há, em primeiro lugar, a questão da linguagem. Este é um assunto recorrente e, como todos os assuntos recorrentes, não resolvido. Há quem acredite que é preciso cuidar da forma de colocar as questões, de maneira a conseguir ser mais apelativo para gente sem formação política suficiente para não se sentir repelido pelo jargão. E há quem defenda que as coisas têm um nome, que chamá-las por esse nome é a forma correcta de dar formação política a quem não a tenha e que tudo o que assim não seja mais não são do que cedências a quem quer diabolizar determinados termos. No Pica Miolos, seguimos a primeira via. O Manifesto do Mudar de Vida segue a segunda.
Para além disso, afirma que “não há outras forças motrizes da mudança social” para além do proletariado. Apesar da questão da posse dos meios de produção ser central para a socialização da propriedade, não acreditamos que seja a mais central. Aliás, não nos parece que exista uma questão central. Todas as lutas que ponham em causa o valor supremo do lucro, da concentração de riqueza e que coloquem em seu lugar o ser humano e o planeta são igualmente nucleares e este igualmente deverá ser tomado no seu sentido literal. O exemplo está na CasaViva, casa que se mantém ocupada há ano e meio com o acordo dos proprietários. Uma colectivização temporária da propriedade privada gerida por um grupo de responsáveis. Não esperou pela posse dos meios de produção.
Para os autores do Manifesto, “é dentro das empresas que o capitalismo manifesta toda a sua brutalidade”, esquecendo, logo à partida, os que nem sequer têm acesso às empresas, os descartáveis, os desocupados, repetindo uma das asneiras do movimento sindical tradicional, que não se lembra que os desempregados também são trabalhadores. Sem emprego, mas trabalhadores ainda assim. Esquecem, da mesma forma, todo um rol de vítimas da tal “brutalidade”, tanto em zonas inundadas pelas alterações climáticas, como nas áreas onde se morre de fome, ou nos barcos onde se morre a tentar chegar a uma vida menos má, só para citar alguns exemplos.
Por fim, decidem, a determinada altura do Manifesto, enumerar as lutas com as quais deve haver ligação, os combates onde os anti-capitalistas devem estar presentes. Ora, quando se vai por esse caminho, ou se consegue fazer uma listagem exaustiva, ou pode sempre haver lugar a críticas por faltar alguma coisa que cada leitor considerar importante. É esse o caso do Manifesto. Refere, com acerto, a questão dos imigrantes, do género, a frente ideológica e cultural. Mas não diz nada sobre a participação nas lutas pelo fim da discriminação da orientação sexual, não toca na ecologia, não fala, e isso dói-nos especialmente, na importância da presença revolucionária nas experiências de re-apropriação de espaços, públicos ou privados.
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