Temos de fazer qualquer coisa, a malta anda distraída
Mudar de Vida provocou discussão na CasaViva
Mudar de Vida é um projecto típico de falta de paciência: é preciso fazer uma ruptura com o sistema em que vivemos. Foi José Mário Branco quem primeiro apresentou o jornal popular. Se de facto o virá a ser, o tempo o dirá. A dúvida ficou da conversa provocada pelo lançamento do nº1, na CasaViva. Certo é que o novo jornal, deliberadamente não registado e que não está nas bancas, se quer popular. “Não tenho dúvidas de que será popular pela sua característica, pela sua expansão, não sei”, afirmou o jornalista Rui Pereira. Zé Mário Branco gostava que o jornal chegasse aos pobres: “Quero falar e aprender política com essas pessoas”. Colectivizar a produção é o objectivo expresso no manifesto, publicado em separata. A questão divergiu opiniões e tomou grande parte da discussão. Em defesa das galinhas e doutras presas. “Não estamos aqui para falar das nossas diferenças, mas para nos concentrarmos no que nos une”, apelou Rui Pereira. Acabou dispersa a discussão. Para o mês que vem há outra? Essa a intenção dos autores do jornal. À mesa, estava também o jornalista Renato Teixeira, no papel de moderador. Segue-se um apanhado do que ficou dito, sábado, 27 de Outubro.
O manifesto de Mudar de Vida é assumidamente anti-capitalista e anti-imperialista, avisou José Mário Branco. Apela à rebelião, algo consagrado na Constituição Portuguesa. “Vocês estão com um gajo zangado”, estado de espírito, aliás, do conjunto de pessoas que lançou o Mudar de Vida. “Também não temos receitas para a mudança e temos grandes dúvidas, dúvidas de caixão à cova, mas o certo é que há uma degenerescência do movimento operário e temos de conversar sobre isso, juntarmo-nos e tirar algumas ideias comuns que passem à acção. Temos de passar à acção, porque só conversar é coisa de intelectuais. Temos de fazer qualquer coisa, a malta anda distraída. Daqui não vai sair a salvação do mundo, mas pode ajudar.”
Rui Pereira apanhou o mote: “A malta está convencida da invencibilidade do império, esse é o perigo. Cada um tem o seu modesto contributo. Pelo facto de não conseguirmos desabar o império, não quer dizer que não possamos fazer o que pudermos”. A malta “quer garantias das revoluções, como dos electrodomésticos que compra”, ironizou o jornalista. Porque o século XX está cheio de revoluções frustradas. E a malta também “não sabe o que quer da revolução”. Mas “estarmos aqui a falar é fazer pela mudança. Ou será missa para convertidos?” Independentemente das dúvidas, garantiu: “Palavra de honra que lá estou depois da revolução!”
Se a conversa de momento era missa para convertidos havia de se voltar a questionar mais para a frente, no encerrar da discussão. Como fazer chegar o jornal a todos? Para além de quem frequenta a CasaViva, o Círculo de Artes e Recreio, em Guimarães, ou a Velha-a-Branca, em Braga, três espaços, ditos alternativos, onde o jornal provocou discussão a norte. A expectativa da equipa do jornal é que cada edição mensal desencadeie discussões que nos levem a mudar de vida.
No início, José Mário Branco citou taxas sócio-económicas como o desemprego, 500 mil pessoas, o que, por envolvimento familiar, atingirá um milhão e meio de portugueses. Apontou o dedo para o Estado, que se retira da sua função social com a ajuda de quem se diz socialista. E serviu-se de indicadores da economia mundial para exemplificar o desequilíbrio existente: as 500 pessoas mais ricas do mundo ganham por ano o equivalente a 527 milhões de pessoas. “Temos de tirar consequências da nossa insuportabilidade de não sermos capazes de viver bem com isto”, acrescentou.
Da assistência, Sérgio Lopes lembrou que as características do capitalismo mudaram e que o patrão se dispersa na abstracção dos números, pelo que a mudança de vida talvez já não passe apenas pela colectivização da produção. Eduarda Sá questionou que meios de produção vamos colectivizar: “Não me interessa colectivizar aviários, fábricas de carne, não me interessa perpetuar certos meios de produção. As razões ecológicas não podem ser ignoradas”.
Do lado da mesa, Renato Teixeira respondeu que há um discurso ecológico oportunista do capitalismo, que é preciso destruir. “Nas teses dos últimos congressos do CDS e do BE, não há diferenças no que respeita à ecologia”. “Discordo da secundarização da luta ecológica”, arrebatou António Alves da Silva. “O capitalismo é visceralmente contra a ecologia. O capitalismo é um sistema esquizofrénico. A luta dos transgénicos é para mim uma luta fundamental de vida. Já não lhes bastava ter o monopólio do pensamento único, também têm o monopólio da vida. É preciso falar não de uma luta, mas de lutas.”
“Discordo um bocado de Renato”, contrapôs Rui Pereira. “Temos de buscar entre nós afinidades que nos unem. A esquerda divide-se muito, como disse a Eduarda, e o capitalismo une-se muito. O Paulo Esperança pôs o dedo na ferida: Mudar de Vida só pode ser um projecto federador. Não sabemos se vai ser ou não um jornal popular pela sua expansão. Mas ai do Mudar de Vida se não for um projecto embrionário. O império não apodrece, come-se, é autofágico. Estamos a acumular forças, há um mínimo que nos compete fazer.”
“Não chamem democrática a uma sociedade que tem pensionistas a receber menos de 500 euros por mês e bancos com milhões de lucros. Esta democracia não nos interessa. E não temos problemas em atacar a esquerda do sistema”, agitou Renato Teixeira.
”Estamos a propor uma mudança na questão fulcral, na questão do poder. Quero uma democracia a sério. A diversidade das lutas não está em causa, o que faço é distinção entre as lutas”, afirmou José Mário Branco. “Os meios de produção nas mãos de todos, é desta democracia que falo. No núcleo desta diversidade há uma luta fulcral: a colectivização da produção”, insistiu. “Não se trata de desvalorizar lutas, mas da distinção do carácter historicamente nuclear de uma e o carácter social de outras.”
”Não se pode colectivizar sem pôr em causa os meios de produção”, repetiu Eduarda. “Não podemos ficar obcecados pela colectivização, temos que nos preocupar com outras questões.” A ecologia voltou a ser tema. Renato caiu em tentação: “Quando vou trabalhar oito horas por dia e penso nas horas que vou trabalhar toda a minha vida, sinto-me um frango”.
As divergências aguçaram-se. Rui Pereira segurou o discurso: “O debate está mortiço na forma e interessante no conteúdo”, comentou. “A burguesia tomou o poder nos finais do século XVIII, pela igualdade para todos. E criou uma sociedade mais desigual que todas.” Ao ponto de se dizer que “melhor do que não ser explorado é ser explorado”, é sinal de trabalho. “O uso do homem pelo homem é um problema seríssimo. Não se transformam sujeitos sem se transformar a sociedade. É aqui e agora que se pode mudar, pela conversa.” Impulsionada pelo Mudar de Vida.
As críticas ao jornal emitidas pelos presentes incidiram na forma do discurso do manifesto, considerado “muito denso”. “Não tem um discurso para todos”, lamentou António Alves da Silva, para quem “a propaganda está para a democracia, como a violência está para as ditaduras”.
Ficou a ideia de que não basta entregar jornais, é preciso criar fóruns para discutir o Mudar de Vida.
Em Guimarães, onde o jornal fora apresentado no dia anterior, os participantes resolveram na altura agendar dois outros debates, um sobre a guerra que se anuncia no Irão, outro sobre um problema local de abastecimento de água. No Porto, perguntava-se: em que outros espaços, que não alternativos, o jornal, que quer chegar ao povo, se vai apresentar? Em resposta, a provocação de José Mário Branco: “É fundamental politizar a vida, não deixar que nos comam as papas na cabeça. Organizem-se, por favor!”
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