Ó ‘mor, compre-me para me estrear
“Ó ’mor, não quer uns moranguinhos frescos? Um euro e meio.” O pedido repete-se para quem se lhe atravessa à frente da banca, no corredor principal, virado para a Rua Formosa. “Quando voltar a passar”, ouve em resposta. “Então, venha ter comigo que lhe arranjo uns bons.” Se o diálogo é comum, dos pregões nem se fala. Há quem os repita ali, naquele local, há mais de 40 anos. Mulheres sobretudo. Mas já se ouvem ali, naquele lugar, há mais de 150 anos, já então mercado de frescos, génese do Mercado do Bolhão edificado na segunda década do século XX.
Hoje, cento e cinquenta anos depois, Primavera 2008, o mercado está ameaçado de morte: a Câmara Municipal do Porto prepara-se para, a qualquer momento, o ceder a privados, por 50 anos, para ali fazerem o que muito bem quiserem, provavelmente mais um centro comercial.
Provavelmente, porque o povo não conhece o projecto, tão pouco os comerciantes do Bolhão. Só os inquilinos das lojas do exterior do edifício são chamados comerciantes; os que estão no interior são ocupantes, pagam licença, são pouco mais de centena e meia. Talvez por isso, Fernando Sá foi o primeiro, neste processo, a apelar à defesa do Bolhão. Fernando Sá é presidente da Associação dos Feirantes do Distrito do Porto e, em notícia do JN, perguntava em meados de Dezembro 2007: “onde estão os movimentos cívicos que em época de eleições se moveram pelo Bolhão, onde está a cidade, onde estão os portuenses?”.
Faltavam poucos dias para a câmara supostamente aprovar um contrato de cedência do Bolhão, por 50 anos, à TCN. A oposição votou contra. Razão: dúvidas sobre o contrato, muitas dúvidas. Um mês depois, quando o assunto foi à Assembleia Municipal, Joaquim Massena veio à praça pública denunciar a intenção de demolição do Bolhão e de destruição da sua essência e recordar que dez anos antes a Câmara lhe pagou um projecto arquitectónico de requalificação do mercado, ganho em concurso público, no qual prevalece o edificado existente e a vivência que lhe dá alma. Um projecto da sua autoria aprovado pela autarquia e pelo IPPAR, que custou ao erário público cerca de um milhão de euros e que Rui Rio arquivou, lançando um outro concurso com um júri sem arquitecto, tendo por objecto “concepção, projecto, construção, manutenção e exploração, mediante a constituição do direito de superfície, do espaço denominado ‘Mercado do Bolhão’” e duração “a propor pelos concorrentes, que não ultrapassará os 50 anos”. Além da TramCroNe, do grupo holandês TCN, concorreu o grupo Amorim.
A TCN anuncia uma aposta de 50 milhões de euros na transformação do Bolhão. Promete manter a traça original exterior e partilhar a área comercial tradicional com novas lojas, metade das quais de cultura, lazer e restauração, construir dois pisos subterrâneos para cargas e descargas e estacionamento para 216 automóveis e um piso intermédio entre os dois actuais pisos, e criar habitação nos torreões. Dois anos de obras, a acabarem a tempo do natal de 2009. Contrapartida para o município: um milhão de euros aquando da emissão da licença de construção e uma percentagem dos resultados de exploração a partir do décimo ano. E adeus Bolhão.
Os promotores do negócio gabaram-se: “Neste projecto, os comerciantes não são problema, mas a solução”. São apenas divulgados esquissos de um projecto exclusivamente avaliado pela vertente económica. “O perfil longitudinal aponta para a ocupação integral desde o rés-do-chão até às galerias. (…) O interior será todo demolido para dar lugar a cobertura de lajes e betão armado”, denuncia o arquitecto Joaquim Massena em entrevista ao JN, 9 de Janeiro último. Até à data, vieram a lume outros desenhos e variáveis versões da ocupação do interior. O certo é que as dúvidas persistem, nomeadamente sobre a existência de projecto arquitectónico e sobre o juízo do Igespar, entidade reguladora do património edificado que sucedeu ao IPPAR, cujo parecer positivo é imprescindível, por se tratar de um edifício classificado.
Quando Joaquim Massena veio literalmente à praça pública, em frente à Câmara Municipal do Porto, apelar à cidadania dos portuenses para se unirem e impedirem a destruição do Bolhão, dentro do edifício os deputados municipais aprovavam por 27 votos contra 26 a deliberação do executivo de entregar o Bolhão à TCN. Cá fora, Massena estava acompanhado de estudantes de arquitectura que, com outros, se ligaram e criaram o movimento de estudantes (manifestobolhao.blogspot.com) e que convocaram por email o encontro de uma meia centena de pessoas nessa noite de 21 de Janeiro. Dentro de 60 dias o contrato seria então assinado. Pela via legal, restavam 30 dias para o impedir.
Dias antes, num encontro da galinha na CasaViva, alguém do GAIA (Grupo de Acção e Intervenção Ambiental) referira a urgência em fazer algo para chamar a atenção para a iminente privatização e transformação do Mercado do Bolhão no terceiro centro comercial da Baixa do Porto. Aliadas as vontades, junto a Almeida Garrett, nessa fria noite de Inverno, anunciaram-se debates para divulgar o assunto no Ateneu Comercial e no Café Ceuta. Estava iniciada a mobilização em defesa do Bolhão.
2 de Fevereiro, primeira manhã de sábado de outras que se haviam de repetir em manifestações de animado protesto contra a decisão camarária, as mulheres receiam perder o Bolhão. Há as conformadas, outras estão cansadas. Algumas erguem os braços: “O Bolhão é nosso!” É nosso e é desolador vê-lo assim tratado, em parte abandonado, em parte espartilhado em obscuros andaimes. Com fios eléctricos como se cordas de estender a roupa fossem, cruzando-se no chafariz de quatro bicas a meio do terreno que outrora foi lameiro de quinta de condes.
Apesar de a Câmara Municipal do Porto o ter mandado construir em 1837, conta A. Martins em www.ippar.pt, “apenas em 1851 se iniciou a sua edificação no mesmo local onde já funcionava um mercado constituído por estruturas ainda demasiado precárias e transitórias, num momento em que uma das artérias mais movimentadas da cidade – a Rua Sá da Bandeira – começava a ser rasgada”. O mercado foi transformado no que é hoje pelo arquitecto António Correia da Silva. “Um dos primeiros exemplares de betão armado construído na cidade”, disse, em recente tertúlia, Manuel Correia Fernandes, arquitecto envolvido no movimento decidido a travar a demolição do Bolhão.
“Ocupando todo um quarteirão, o Mercado do Bolhão apresenta planta rectangular alongada, com linhas arquitectónicas e gramática decorativa de fundo neoclássico tardio, algo aproximado às do arquitecto José Marques da Silva (1869-1947), como a Estação de S. Bento, não só na linguagem arquitectónica como na própria monumentalidade exibida que, no caso do mercado, será acentuada pelos torreões colocados nas esquinas”, descreve o IPPAR. Os mesmo torreões que Rui Rio concede que se transformem em habitação, fronteiros a centenas de casas devolutas.
“O Bolhão também é cá em cima”, gritam, lá dentro, as mulheres no varandim, ao ouvirem os bombos e as rimas no andar de baixo. Nessa manhã de sábado, algum povo mais foi ao Mercado do Bolhão, por mor que ele não venha abaixo. Para que todos saibam, para mostrar aos que resistem que estão acompanhados, para somar assinaturas a uma petição para que o mercado não seja destruído e substituído por um centro comercial.
Subida; Descida. Indicam azulejos nas paredes das escadarias junto aos portões laterais, para quem entra pela Rua de Sá da Bandeira ou pela Rua de Alexandre Braga. Entre descidas e subidas, diversas escadarias interligam os dois pisos do mercado. Sobe-se pela esquerda, desce-se pela direita. Uma ordem que faria sentido noutros tempos, mas que já não importa, até porque algumas escadas estão intransponíveis, transformadas em armazém. Desce-se e no pátio central, subdividido em dois espaços exteriores por uma galeria coberta construída nos anos 40, de novo o acesso à Rua Formosa. Sobe-se e há galerias em parte desertas e mulheres entre legumes nas alas próximas da entrada a norte, Rua de Fernandes Tomás.
Mulheres cansadas. Que não conhecem o futuro do Bolhão, seu local de trabalho, ganha-pão e convívio. Não se sentem representadas pelo Sr. Alcino, o presidente da Associação dos Comerciantes do Bolhão, que integra a comissão de acompanhamento do processo de transição do mercado, a par do vereador Lino Ferreira e de Pedro Neves, engenheiro de obra da TCN. Algumas tornaram-se presença assídua nas reuniões que a partir de Fevereiro passaram a realizar-se, às terças-feiras, ao fim da tarde, na Associação de Beneficência Familiar, na Rua Formosa. Para preparar acções contra a demolição e privatização do Bolhão.
Não é ainda conhecida, o projecto idem, nem tão pouco o andamento do processo judicial. Do contrato não se voltou a ouvir falar. Na terça-feira, 25 de Março, o Bolhão foi à Assembleia da República, os representantes da PIC foram recebidos pelos grupos parlamentares. Anunciava-se uma exposição e um ciclo de debates no Orfeão do Porto com início a 28 de Março, já o Pica Miolos se preparava para a impressão. Os comerciantes continuavam a ocupar o interior do mercado. Pouco mais certezas, se não que o edifício necessita urgentemente de obras que a Câmara se recusa a pagar ou, tão pouco, a procurar financiamento para uma requalificação que é da sua responsabilidade.
A bem ou a mal, o Bolhão vai mudar. Resta ainda saber se as escadarias continuarão a interligar os dois pisos do mercado e se os azulejos “Subida” e “Descida” não se transformarão em peças decorativas sem indicarem caminho algum. Se assim for, deixar-se-á certamente de ouvir ao raiar do dia: “Ó ‘mor, compre-me para me estrear”.
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