O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 6 de abril de 2008

Ó ‘mor, compre-me para me estrear

“Ó ’mor, não quer uns morangui­nhos frescos? Um euro e meio.” O pedido repete-se para quem se lhe atravessa à frente da ban­ca, no corredor principal, virado para a Rua Formosa. “Quando voltar a passar”, ouve em respos­ta. “Então, venha ter comigo que lhe arranjo uns bons.” Se o diálo­go é comum, dos pregões nem se fala. Há quem os repita ali, na­quele local, há mais de 40 anos. Mulheres sobretudo. Mas já se ouvem ali, naquele lugar, há mais de 150 anos, já então mercado de frescos, génese do Mercado do Bolhão edificado na segunda década do século XX.

Hoje, cento e cinquenta anos depois, Primavera 2008, o mer­cado está ameaçado de morte: a Câmara Municipal do Porto prepara-se para, a qualquer mo­mento, o ceder a privados, por 50 anos, para ali fazerem o que muito bem quiserem, provavel­mente mais um centro comercial.

Provavelmente, porque o povo não conhece o projecto, tão pou­co os comerciantes do Bolhão. Só os inquilinos das lojas do ex­terior do edifício são chamados comerciantes; os que estão no interior são ocupantes, pagam licença, são pouco mais de cen­tena e meia. Talvez por isso, Fer­nando Sá foi o primeiro, neste processo, a apelar à defesa do Bolhão. Fernando Sá é presiden­te da Associação dos Feirantes do Distrito do Porto e, em notícia do JN, perguntava em meados de Dezembro 2007: “onde estão os movimentos cívicos que em época de eleições se moveram pelo Bolhão, onde está a cida­de, onde estão os portuenses?”.

Faltavam poucos dias para a câ­mara supostamente aprovar um contrato de cedência do Bolhão, por 50 anos, à TCN. A oposição vo­tou contra. Razão: dúvidas sobre o contrato, muitas dúvidas. Um mês depois, quando o assunto foi à Assembleia Municipal, Joaquim Massena veio à praça pública de­nunciar a intenção de demolição do Bolhão e de destruição da sua essência e recordar que dez anos antes a Câmara lhe pagou um pro­jecto arquitectónico de requalifi­cação do mercado, ganho em con­curso público, no qual prevalece o edificado existente e a vivência que lhe dá alma. Um projecto da sua autoria aprovado pela autar­quia e pelo IPPAR, que custou ao erário público cerca de um milhão de euros e que Rui Rio arquivou, lançando um outro concurso com um júri sem arquitecto, tendo por objecto “concepção, projecto, construção, manutenção e explo­ração, mediante a constituição do direito de superfície, do espaço denominado ‘Mercado do Bo­lhão’” e duração “a propor pelos concorrentes, que não ultrapassa­rá os 50 anos”. Além da TramCro­Ne, do grupo holandês TCN, con­correu o grupo Amorim.

A TCN anuncia uma aposta de 50 milhões de euros na transforma­ção do Bolhão. Promete manter a traça original exterior e partilhar a área comercial tradicional com novas lojas, metade das quais de cultura, lazer e restauração, construir dois pisos subterrâneos para cargas e descargas e esta­cionamento para 216 automó­veis e um piso intermédio entre os dois actuais pisos, e criar ha­bitação nos torreões. Dois anos de obras, a acabarem a tempo do natal de 2009. Contrapartida para o município: um milhão de euros aquando da emissão da licença de construção e uma per­centagem dos resultados de ex­ploração a partir do décimo ano. E adeus Bolhão.

Os promotores do negócio gabaram-se: “Neste projecto, os comerciantes não são problema, mas a solução”. São apenas divulgados esquissos de um projecto exclusivamente avaliado pela vertente económica. “O perfil longitudinal aponta para a ocupação integral desde o rés-do-chão até às galerias. (…) O in­terior será todo demolido para dar lugar a cobertura de lajes e betão armado”, denuncia o arquitecto Joaquim Massena em entrevista ao JN, 9 de Janeiro último. Até à data, vieram a lume outros desenhos e variáveis versões da ocupação do interior. O certo é que as dúvidas persistem, no­meadamente sobre a existência de projecto arquitectónico e sobre o juízo do Igespar, enti­dade reguladora do patrimó­nio edificado que sucedeu ao IPPAR, cujo parecer positivo é imprescindível, por se tratar de um edifício classificado.

Quando Joaquim Massena veio literalmente à praça pública, em frente à Câmara Municipal do Porto, apelar à cidadania dos portuenses para se unirem e im­pedirem a destruição do Bolhão, dentro do edifício os deputados municipais aprovavam por 27 votos contra 26 a deliberação do executivo de entregar o Bolhão à TCN. Cá fora, Massena estava acompanhado de estudantes de arquitectura que, com outros, se ligaram e criaram o movimento de estudantes (manifestobolhao.blogspot.com) e que convoca­ram por email o encontro de uma meia centena de pessoas nessa noite de 21 de Janeiro. Dentro de 60 dias o contrato seria então assinado. Pela via legal, restavam 30 dias para o impedir.

Dias antes, num encontro da galinha na CasaViva, alguém do GAIA (Grupo de Acção e In­tervenção Ambiental) referira a urgência em fazer algo para cha­mar a atenção para a iminente privatização e transformação do Mercado do Bolhão no terceiro centro comercial da Baixa do Por­to. Aliadas as vontades, junto a Almeida Garrett, nessa fria noite de Inverno, anunciaram-se de­bates para divulgar o assunto no Ateneu Comercial e no Café Ceu­ta. Estava iniciada a mobilização em defesa do Bolhão.

2 de Fevereiro, primeira manhã de sábado de outras que se ha­viam de repetir em manifesta­ções de animado protesto contra a decisão camarária, as mulheres receiam perder o Bolhão. Há as conformadas, outras estão can­sadas. Algumas erguem os bra­ços: “O Bolhão é nosso!” É nosso e é desolador vê-lo assim tratado, em parte abandonado, em parte espartilhado em obscuros andai­mes. Com fios eléctricos como se cordas de estender a roupa fos­sem, cruzando-se no chafariz de quatro bicas a meio do terreno que outrora foi lameiro de quinta de condes.

Apesar de a Câmara Municipal do Porto o ter mandado construir em 1837, conta A. Martins em www.ippar.pt, “apenas em 1851 se ini­ciou a sua edificação no mesmo local onde já funcionava um mer­cado constituído por estruturas ainda demasiado precárias e tran­sitórias, num momento em que uma das artérias mais movimen­tadas da cidade – a Rua Sá da Ban­deira – começava a ser rasgada”. O mercado foi transformado no que é hoje pelo arquitecto António Correia da Silva. “Um dos primei­ros exemplares de betão armado construído na cidade”, disse, em recente tertúlia, Ma­nuel Correia Fernandes, arquitecto envolvido no movimento decidido a travar a demolição do Bolhão.

“Ocupando todo um quarteirão, o Mercado do Bolhão apresenta planta rectangular alongada, com linhas arquitectónicas e gramáti­ca decorativa de fundo neoclássi­co tardio, algo aproximado às do arquitecto José Marques da Silva (1869-1947), como a Estação de S. Bento, não só na linguagem arquitectónica como na própria monumentalidade exibida que, no caso do mercado, será acen­tuada pelos torreões colocados nas esquinas”, descreve o IPPAR. Os mesmo torreões que Rui Rio concede que se transformem em habitação, fronteiros a cente­nas de casas devolutas.

Nessa primeira manhã de Feve­reiro, como nas seguintes, a TCN dá as boas vindas nos quatro portões do edifício. No alto da fachada principal voltada a sul, o comércio e a agricultura perma­necem personificados em escul­turas de pedra (atribuídas a Bento Cândido da Silva), espreitando para a Rua Formosa, como que saudando quem entra.

“O Bolhão também é cá em cima”, gritam, lá dentro, as mulhe­res no varandim, ao ouvirem os bombos e as rimas no andar de baixo. Nessa manhã de sábado, algum povo mais foi ao Mercado do Bolhão, por mor que ele não venha abaixo. Para que todos saibam, para mostrar aos que resistem que estão acompanha­dos, para somar assinaturas a uma petição para que o mercado não seja destruído e substituído por um centro comercial.

Subida; Descida. Indicam azulejos nas paredes das esca­darias junto aos portões laterais, para quem entra pela Rua de Sá da Bandeira ou pela Rua de Alexandre Braga. Entre desci­das e subidas, diversas escadarias interligam os dois pisos do merca­do. Sobe-se pela esquerda, desce-se pela direita. Uma ordem que faria sentido noutros tempos, mas que já não importa, até porque algumas escadas estão intranspo­níveis, transformadas em arma­zém. Desce-se e no pátio central, subdividido em dois espaços ex­teriores por uma galeria coberta construída nos anos 40, de novo o acesso à Rua Formosa. Sobe-se e há galerias em parte desertas e mulheres entre legumes nas alas próximas da entrada a norte, Rua de Fernandes Tomás.

Mulheres cansadas. Que não co­nhecem o futuro do Bolhão, seu local de trabalho, ganha-pão e convívio. Não se sentem represen­tadas pelo Sr. Alcino, o presidente da Associação dos Comerciantes do Bolhão, que integra a comis­são de acompanhamento do pro­cesso de transição do mercado, a par do vereador Lino Ferreira e de Pedro Neves, engenheiro de obra da TCN. Algumas tornaram-se pre­sença assídua nas reuniões que a partir de Fevereiro passaram a realizar-se, às terças-feiras, ao fim da tarde, na Associação de Bene­ficência Familiar, na Rua Formosa. Para prepa­rar acções contra a demolição e privatização do Bolhão.

No dia 27 de Fevereiro, uma co­missão do que veio a tor­nar-se PIC (Plataforma de Intervenção Cívica), cons­tituída nessas reuniões, entregou na Assembleia República uma petição com muito mais do que as 7.500 assinaturas neces­sárias para o assunto ir a discussão no Parlamento mas um tanto menos do que as 50 mil anunciadas. Nesse dia, entrou no Tri­bunal Administrativo do Porto uma acção judicial para impedir o processo. Circunstancialmente, um grupo de quatro advoga­das aceitou intentar um processo judicial para impedir a autarquia de se desfazer do patrimó­nio físico e humano mais emblemático do Porto. Circunstancialmente mas não pro bono. Honorários: 15 mil euros. A acção foi apresen­tada em nome da Associação de Feirantes do Distrito do Porto, do GAIA e do MIC (Movimento de Intervenção Cívica). Oficialmente, porque oficiosamente foi apre­sentada em nome de uma série de portuenses. Foi aberta uma conta para receber donativos e iniciada a programação de eventos a fa­vor. Mesmo sem se saber de que acção se trata: alegadamente para não darem armas ao inimi­go, as advogadas escusaram-se a revelar o tipo de acção judicial interposta, conforme afirmaram numa das primeiras terças-feiras de Março. Na ocasião, confirma­ram aos presentes a inexistên­cia do contrato entre a CMP e a TCN e que, segundo o processo a que tiveram acesso, apenas 3% da actual área do Bolhão está reservada ao comércio de fres­cos no projecto da TCN.

No mercado, à quinta manhã de sábado, a animação esmoreceu. Nas reuniões de terça-feira, a CasaViva deixou de se represen­tar, por não se identificar com uma plataforma em que o “basismo é inimigo da acção”. Mas não perdeu o interesse pela causa. Também os jornais continuam atentos ao assunto. Persiste a incógnita em torno do desfecho do processo. Em 11 de Março, a TCN promoveu, no Rivoli, uma suposta sessão de esclarecimento sobre o projecto vedada aos jornalistas e exclusiva aos comerciantes e seus convida­dos. Mas não a todos: apesar de convidado de um comerciante, Joaquim Massena foi impedido de en­trar. O encontro não esclareceu ninguém. “Ainda nada está defini­do e de concreto o Bolhão só tem o modelo económico que viabiliza o investimento”, dizia, dias depois, Pedro Neves. “Existe um concei­to e estudo prévio desenvolvido para a elaboração da nossa pro­posta, estando neste momento em desenvolvimento o antepro­jecto”, afirmou o engenheiro da TCN a “O Primeiro de Janeiro”, em entrevista por email. “A apresen­tação ao Igespar será feita com a câmara brevemente.”

Não é ainda conhecida, o projecto idem, nem tão pouco o andamen­to do processo judicial. Do contra­to não se voltou a ouvir falar. Na terça-feira, 25 de Março, o Bolhão foi à Assembleia da República, os representantes da PIC foram recebidos pelos grupos parla­mentares. Anunciava-se uma ex­posição e um ciclo de debates no Orfeão do Porto com início a 28 de Março, já o Pica Miolos se pre­parava para a impressão. Os comerciantes continuavam a ocupar o interior do mercado. Pouco mais certezas, se não que o edifício necessita urgentemente de obras que a Câmara se recusa a pagar ou, tão pouco, a procurar financiamento para uma requali­ficação que é da sua responsabi­lidade.

A bem ou a mal, o Bolhão vai mudar. Resta ainda saber se as escadarias continuarão a interligar os dois pi­sos do mercado e se os azulejos “Subida” e “Descida” não se transformarão em peças deco­rativas sem indicarem caminho algum. Se assim for, deixar-se-á certamente de ouvir ao raiar do dia: “Ó ‘mor, compre-me para me estrear”.

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