A ideia de espaço público constitui – já desde a antiguidade clássica – a base da democracia enquanto prática quotidiana. Se, na antiga Grécia, esta nunca foi alargada à grande parte da população (mulheres, estrangeiros e escravos nomeadamente), actualmente a sua inexistência é inerente à própria condição cidadã. A democracia, de dinâmica passou a regime, e o espaço público – onde as grandes questões eram alvo de decisão por parte das pessoas – foi destruído e “dividido” em fábricas e outros locais de trabalho, centros comerciais, clínicas psiquiátricas ou centros de dia. A vida passou a ser uma realidade espácio-temporal baseada na incessante satisfação de necessidades e não na reflexão, no debate, no livre pensamento, na possibilidade e responsabilidade de decidir sobre o que nos diz respeito.
A cidade é o palco por excelência deste processo de privatização social da vida – não de individualização –, em que a relação com o outro depende essencialmente de uma lógica instrumental. O contacto com o próximo é cada vez mais determinado pelo que queremos pedir, pelo que precisamos, pelo que temos que dar, pelo que está escrito no contrato de trabalho, pelo que é definido pelas regras de boa educação, pelo o que poderei vir a escrever no livro de reclamações. Não pela dupla vontade de exprimirmos a nossa individualidade e de recebermos a individualidade dos outros, um privilégio que, sendo sujeito a um processo de institucionalização temporal – depois das 6 da tarde, antes das 8 da manhã – deixou obviamente de o ser. E quando a normalidade se torna a definição oficial da mais profunda instabilidade – do emprego que não há, mas que se tem de ter, das contas que não param de aumentar, mas que se têm de pagar, de uma vida da qual não se gosta, mas tem que ser vivida – passa a ser não oficial o conflito, nas suas múltiplas formas.
A criação de linhas de fuga e de resistência passou e passa pela organização de novas esferas semi-públicas de discussão e convivência, que funcionem fora da lógica do Estado e capital. Segundo Hakim Bey, surge a possibilidade de grupos de amigos isolados assumirem uma forma mais complexa: “núcleos de aliados mutuamente escolhidos, trabalhando (brincando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estruturas mediadas. Depois quererá transformar-se numa rede horizontal de semelhantes grupos autónomos – depois, numa “tendência” – depois, num “movimento” – e depois numa rede cinética de “zonas autónomas temporárias” [T.A.Z]”.
É com base na ideia de que “não há um metro quadrado da Terra sem polícias ou impostos…em teoria”, e de que é possível criar enclaves livres, “mini-sociedades que vivam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei”, que ocorrem, ao longo da década de noventa, ocupações de casas e tentativas de organização de centros sociais em Portugal. Apesar de ser um pouco redutor englobar todas estas experiências numa só tendência, podemos afirmar – em abstracto – que foram lugares propícios à espontaneidade e aos acasos da vida quotidiana, tendo possibilitado encontros com pessoas de fora, partilha de saberes, a oportunidade de fazer as coisas de uma outra maneira e, desde logo, equacionar modos de agir no mundo.
O aumento da repressão, aliado à crescente afirmação das cidades enquanto núcleos geradores de produtividade (e também a uma certa atitude de isolamento dogmático por parte de vários colectivos ocupas), determinou o fim de quase todos os centros sociais ocupados (a COSA vive!). Porém, este fenómeno é apenas um pequeno indício de um longo processo de transformação dos centros urbanos em centros de negócios. Casos como o do Mercado do Bolhão, no Porto, e do Grémio Lisbonense, em Lisboa, tornam mais visível a tendência dominante para o desaparecimento de tudo o que destoa do modo de funcionamento empresarial. Mais do que nunca, e perante a multiplicidade de processos de objectivação do quotidiano – muitos dos quais com um pendor fortemente repressivo –, a criação de espaços libertados (e que queiram libertar) deverá constituir uma das principais estratégias orientadoras da luta anti-autoritária.
A 11 e 12 de Abril, a CasaViva abre-se a todas as pessoas e colectivos que nela queiram viver por esses dias e partilhar perspectivas e acções relacionadas com a questão da ocupação, aproveitando os dias europeus de acção de apoio a squats e espaços autónomos lançados pela rede Squat.net. O desafio é o habitual. Tragam ideias de acção (e tudo o que elas precisarem para serem levadas a efeito) e disponibilidade para participar nas acções pensadas por outras pessoas. Venham preparados para serem co-gestores do espaço.
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