O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 6 de abril de 2008

O espaço contra a autoridade

A ideia de espaço público constitui – já desde a anti­guidade clássica – a base da democracia enquanto prática quotidiana. Se, na antiga Gré­cia, esta nunca foi alargada à grande parte da população (mulheres, estrangeiros e es­cravos nomeadamente), ac­tualmente a sua inexistência é inerente à própria condição cidadã. A democracia, de di­nâmica passou a regime, e o espaço público – onde as grandes questões eram alvo de decisão por parte das pes­soas – foi destruído e “dividi­do” em fábricas e outros locais de trabalho, centros comer­ciais, clínicas psiquiátricas ou centros de dia. A vida passou a ser uma realidade espácio-temporal baseada na inces­sante satisfação de necessi­dades e não na reflexão, no debate, no livre pensamento, na possibilidade e responsa­bilidade de decidir sobre o que nos diz respeito.

A cidade é o palco por exce­lência deste processo de pri­vatização social da vida – não de individualização –, em que a relação com o outro depen­de essencialmente de uma ló­gica instrumental. O contacto com o próximo é cada vez mais determinado pelo que queremos pedir, pelo que precisamos, pelo que temos que dar, pelo que está escrito no contrato de trabalho, pelo que é definido pelas regras de boa educação, pelo o que poderei vir a escrever no livro de reclamações. Não pela du­pla vontade de exprimirmos a nossa individualidade e de recebermos a individualida­de dos outros, um privilégio que, sendo sujeito a um pro­cesso de institucionalização temporal – depois das 6 da tarde, antes das 8 da manhã – deixou obviamente de o ser. E quando a normalidade se tor­na a definição oficial da mais profunda instabilidade – do emprego que não há, mas que se tem de ter, das contas que não param de aumentar, mas que se têm de pagar, de uma vida da qual não se gosta, mas tem que ser vivida – passa a ser não oficial o conflito, nas suas múltiplas formas.

A criação de linhas de fuga e de resistência passou e passa pela organização de novas esferas semi-públicas de dis­cussão e convivência, que funcionem fora da lógica do Estado e capital. Segundo Hakim Bey, surge a possibi­lidade de grupos de amigos isolados assumirem uma for­ma mais complexa: “núcleos de aliados mutuamente es­colhidos, trabalhando (brin­cando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estrutu­ras mediadas. Depois quere­rá transformar-se numa rede horizontal de semelhantes grupos autónomos – depois, numa “tendência” – depois, num “movimento” – e depois numa rede cinética de “zo­nas autónomas temporárias” [T.A.Z]”.

É com base na ideia de que “não há um metro quadrado da Terra sem polícias ou im­postos…em teoria”, e de que é possível criar enclaves livres, “mini-sociedades que vivam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei”, que ocorrem, ao longo da déca­da de noventa, ocupações de casas e tentativas de organi­zação de centros sociais em Portugal. Apesar de ser um pouco redutor englobar todas estas experiências numa só tendência, podemos afirmar – em abstracto – que foram lu­gares propícios à espontanei­dade e aos acasos da vida quotidiana, tendo possi­bilitado encontros com pessoas de fora, partilha de saberes, a oportuni­dade de fazer as coisas de uma outra maneira e, desde logo, equacionar modos de agir no mundo.

O aumento da repressão, aliado à crescente afirma­ção das cidades enquan­to núcleos geradores de produtividade (e tam­bém a uma certa atitude de isolamento dogmático por parte de vários colec­tivos ocupas), determi­nou o fim de quase todos os centros sociais ocu­pados (a COSA vive!). Porém, este fenómeno é apenas um pequeno indício de um longo processo de transformação dos centros urbanos em cen­tros de negócios. Casos como o do Mercado do Bolhão, no Porto, e do Grémio Lisbonen­se, em Lisboa, tornam mais visível a tendência dominante para o desaparecimento de tudo o que destoa do modo de funcionamento empresarial. Mais do que nunca, e perante a multiplicidade de processos de objectivação do quotidia­no – muitos dos quais com um pendor fortemente repressivo –, a criação de espaços liber­tados (e que queiram libertar) deverá constituir uma das principais estratégias orienta­doras da luta anti-autoritária.

A 11 e 12 de Abril, a CasaViva abre-se a todas as pessoas e co­lectivos que nela queiram viver por esses dias e partilhar perspec­tivas e acções relacionadas com a questão da ocupação, aproveitan­do os dias europeus de acção de apoio a squats e espaços autóno­mos lançados pela rede Squat.net. O desafio é o habitual. Tragam ideias de acção (e tudo o que elas precisarem para serem levadas a efeito) e disponibilidade para par­ticipar nas acções pensadas por ou­tras pessoas. Venham preparados para serem co-gestores do espaço.

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