O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 6 de abril de 2008

Apontamentos históricos para a compreensão do sentimento nacional basco

Poucas vezes um acontecimen­to de solidariedade terá atingi­do de forma tão certeira o seu objectivo como a conversa que decorreu na tarde de 22 de De­zembro passado, dedicada ao povo basco e à sua luta. Quem teve o privilégio de estar na Ca­saViva a ouvir e interpelar Rui Pereira e alguns activistas da ASEH – Associação de Solidarie­dade com Euskal Herria saiu de lá com conhecimentos históricos e pinceladas de actualidade que ajudam a compreender definitivamente o sentimento nacional basco. Ora, quando se acredita que uma causa é merecedora de solidariedade, nada melhor do que partilhar o que se conhece, de forma a que a informação permita que novas pessoas possuam argu­mentação suficiente para ir desfazendo as inverdades que os poderes político e mediático paulatinamente inculcam.

Foi isso que aconteceu. Rui Pereira, jornalista e autor do polémico livro Euskadi - A Guerra Esque­cida dos Bascos, cuja segunda edição foi, alegadamente, com­prada quase na totalidade pelo Estado espanhol para a impedir de circular, abriu uma conver­sa enormemente pedagógica onde se debateram as razões históricas que conduziram ao conflito e a repressão de que é, actualmente, alvo um povo tão próximo de nós.

A “guerra do norte”, como lhe chamam os militares em Ma­drid, é o último processo polí­tico europeu com uma compo­nente militar activa, agora que o IRA, por exemplo, baixou as armas. “É um conflito de baixa intensidade militar e altíssima intensidade política”, descre­veu Rui Pereira. Euskadi foi o laboratório duma agenda re­pressiva mundial. Foi lá que se ensaiou a teoria da guerra total, que prevê operações milita­res de conquista e de controlo social das populações, através da policialização do conflito. A determinada altura, deixou de se tratar da luta dum exército contra um movimento arma­do e passou a ser apresentado como um caso de polícia, onde há criminosos que têm que ser detidos, porque atentam con­tra a democracia. Este véu, que transforma o conflito numa coi­sa que ele nunca foi, chama-se propaganda e está inscrita no topo do livro de instruções da guerra total que Espanha ini­ciou nos anos 80 e a que todo o Ocidente, entretanto, aderiu. A partir daqui pode-se fazer o que se quiser, testando os limi­tes da tolerância internacional, que aumentou brutalmente depois de 2001. Tal como acon­tece hoje com Guantánamo e mais umas prisões secretas a soldo dos “aliados” já Euskadi tinha sentido na pele as depor­tações de pessoas sem culpa formada para “zonas de não direito”, territórios longínquos e sob domínio dos serviços se­cretos do Estado espanhol.

No seguimento do 11 de Setem­bro de 2001, as coisas piora­ram. Mas já lá vamos. Antes, será melhor respeitar a ordem que a conversa seguiu e lembrar que o País Basco é uma entidade mais antiga do que Es­panha. Ou que o priemiro rei basco foi coroado três séculos antes de D. Afonso Henriques. Militarmen­te, o conflito com Castela existe desde o século XIII. Em 1521, o reino basco de Navarra cai. Em 1580, cai Lisboa. Trata-se, refe­riu o jornalista, do “mesmo mo­vimento expan­sivo do centro, de Madrid, para a periferia. Do mesmo modo, nessas perife­rias, em Portu­gal, na Galiza, na Catalunha, no País Basco, começa a enrai­zar-se o repú­dio pelo centro. De todas essas zonas, apenas Portugal logrou, já no século XVII resolver a sua questão”. Os bas­cos, por exem­plo, ainda não a resolveram.

Mesmo dominan­do militarmente a zona, os reis de Castela sempre respeitaram os chamados “foros”, a democracia ru­ral basca, forma através da qual a sociedade se organizava e pela qual sempre manteve uma autonomia relativa. Esse respei­to pelos “foros” durou até ao século XIX, mais precisamente até 1871, altura em que foram suprimidos, juntamente com a última fronteira que separava Espanha do País Basco. “Tudo isto foi pura conquista militar”, repetiu várias vezes Rui Pereira, para que não deixássemos de o ter presente. Surge aí um novo nacionalismo, uma reinvenção duma tradição basca encetada por alguns pensadores e que esqueceu Navarra. Os territó­rios desse nacionalismo são definidos como Euskadi e inte­gram Vitória/Gasteiz, Bilbau/Bilbo e San Sebastian/Donostia. Tinha, como todos os naciona­lismos do século XIX, caracte­rísticas marcadamente racistas e dele emergirá o Partido Na­cionalista Vasco (PNV).

Em 1936, depois do que co­nhecemos por guerra civil es­panhola, nome recusado pelos bascos, a vitória das forças de Franco deu origem a uma desbasquização, onde se mudaram nomes a mortos, onde se proi­biu a língua e o baptismo com nomes bascos, no que foi um dos processos mais violentos do fascismo europeu de desca­racterização de comunidades”. Em 1958, um grupo de jovens es­tudantes de S. Sebastian/Donos­tia e Bilbau/Bilbo, descontentes com a inacção do PNV, formaram um grupo a que chamaram Ekin, o que significa “Fazer”. E agir era, de facto, o objectivo deste grupo. Se necessário, com recurso à vertente militar. É daqui que nasce a ETA, que viria a ter um papel preponderante para a “transição democrática” espa­nhola (que Juan Carlos impôs no seguimento da morte de Franco), ao fazer explodir Car­rero Blanco , “delfim do ditador, que ficou, assim, sem o sucessor que tinha vindo a preparar”, como notou Rui Pereira.

Se as coisas melhoraram mo­mentaneamente, foi porque se tornou difícil articular a re­pressão, agora que o Estado espanhol entrava no clube das democracias, agora que es­casseavam ditaduras amigas e agora que surgiam, por toda a Europa, movimentos armados. As estruturas mantinham-se, que a “transição democrática” não lhes mexeu, mas os objec­tivos passavam a ter dois sen­tidos: por um lado, “evitar que os comunistas tomassem conta daquilo” e, por outro, “evitar que Espanha se separe”. Entra-se, assim, em plenos anos 80 do século XX, no que o jornalista apelida de “democracia a duas velocidades” que transformou o problema nacional basco num problema policial espa­nhol e em questão repressiva à escala internacional. Entra-se na fase da guerra total.

Em Dezembro de 2001, surge um novo desenvolvimento, quando Baltazar Garzón declara ao ABC, diário de direita do Es­tado espanhol, que “não existe envolvente da ETA. Tudo é ETA”. Inaugura-se, então, uma nova fase, a que traz a possibilidade de declarar ilegais organizações inteiras. Desde então, aconte­ceu isso mesmo a 290 associa­ções, entre elas grupos de mu­lheres, de jovens, de moradores. Tudo é ETA.

O PNV, partido actualmente no poder, é, oficialmente, in­dependentista. É um partido democrata-cristão mas que, em muitos pontos, está muito à esquerda do partido socia­lista de Sócrates, por exemplo. Se, por um lado agrupa grande parte do empresariado basco, por outro, é-lhe afecta a maior central sindical basca. É tão abrangente que, na sua inde­finição, se limita a uma prática de administrador da situação que existe. É, na teoria, revolu­cionário, porque afirma querer uma situação nova e, na prática, do sistema, porque não provoca nem cria novas situações Tem-se valido do chamado pragma­tismo para se manter no poder, mostrando-se como alternativa única ao PP, e baseando-se no vamos, por pequenos passos, caminhando para uma autono­mia maior, até que se possa rei­vindicar algo mais. Mas não se livra de ter ajudado a instituir a ideia de que o problema do País Basco é um problema de paz, quando se trata, de facto, de um problema de justiça.

É que, ainda hoje, a situação repressiva é de tal ordem que não se reduz à vertente militar, antes pretende retirar todo o oxigénio que permitia ao sen­timento basco respirar. “O inde­pendentismo basco construiu espaços alternativos que o Es­tado espanhol não conseguia controlar institucionalmente. Havia vida para além do Estado espanhol. Foi isso que se quis destruir”, alertou Rui Pereira. Por estes dias, “há cidades fe­chadas por check points, há tor­tura, há presos políticos espa­lhados por todo o território do Estado espanhol, há revistas a 50 pessoas por terem o aspecto errado. Decidem que uma pes­soa é terrorista e ilegalizam a associação a que pertence”.

Depois da conversa, a música solidária, que, como se pode ler no blog da ASEH, “começou com o hip hop corrosivo dos Stregul para, depois, dar lugar ao punk dos Sobressaltos e ao metal dos Razer. Durante os concertos, um projector lançava vídeos so­bre a parede que ilustram bem o dia-a-dia do povo basco e da repressão que vive”.

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