O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 6 de abril de 2008

Expulsos pela pobreza, recebidos como criminosos

Início da mobilização
O desembarque, em Olhão, e o posterior encarceramen­to, no Porto, de 23 cidadãos oriundos de Marrocos e con­siderados ilegais foi a faísca que fez reunir, na CasaViva, respondendo a um apelo da recém-criada Rede Que Al­ternativas?, algumas pessoas e associações preocupadas com as questões da mobili­dade humana. O objectivo era organizar uma acção que, partindo deste caso concre­to, colocasse em evidência “a situação dramática em que se encontram centenas de imigrantes que foram víti­mas de tráfico humano e que devem ser protegidas”, para além de desmascarar “as po­líticas de repressão na UE, de externalização de fronteiras”, que “favorecem a explora­ção desumana de homens e mulheres indocumentados”, como se podia ler no convite da Rede Que Alternativas?.

Tudo o que nesse encontro, a 16 de Janeiro, se decidiu acabou, no entanto, por ser ultrapassado pela veloci­dade que o governo portu­guês imprimiu a esta reali­dade. De tal forma que se teve que antecipar as coisas para que a nossa solidarie­dade não se demonstrasse demasiado tarde.

Um relato da vigília
Por volta das 15h30 do dia 23, uma semana depois, soa o alarme: o Serviço de Es­trangeiros e Fronteiras (SEF) prepara-se para, ainda nessa tarde, proceder à deporta­ção de mais alguns dos imi­grantes detidos no Espaço de Acolhimento de Estrangeiros e Apátridas, Unidade de San­to António, no Porto. Os que chegam ao local pelas 16h30, não vêem sair ninguém. Por volta das 18h00, a advogada de alguns dos detidos infor­ma que já só estavam seis marroquinos.

A deportação vespertina já tinha tido lugar. Cerca das 18h30, umas três dezenas de pessoas concen­tram-se junto ao portão de entrada do centro, respon­dendo ao apelo para uma vi­gília, decidida na noite ante­rior na sequência das notícias sobre as primeiras operações secretas, e ilegais, de depor­tação.

Distribuímos um folhe­to, também ele definido em cima da hora, questionando o ministro da Administração In­terna, Rui Pereira, sobre as po­líticas de imigração europeias, e exibimos uma faixa com os dizeres: NINGUÉM É ILEGAL.

A vigília durou cerca de duas horas. Por volta das 20h30, o deputado José Soeiro tentou visitar os imigrantes para lhes entregar as mensagens reco­lhidas entre as pessoas que se manifestavam. Foi-lhe dito que eles já estavam a dormir.

Antes de desmobilizarmos, e já depois de marcarmos uma reunião para a segunda-feira seguinte para preparar uma manifestação para o dia 9 de Fevereiro, para exigir a alte­ração de situações como a presente, subimos a rua e, em frente ao bloco onde os marro­quinos estavam detidos, ten­támos comunicar com a ajuda de um megafone. Através da língua francesa e também em árabe, falado pelos compa­triotas radicados em Portugal e presentes na vigília. Obtive­mos resposta, em berros da janela. Durante cerca de cinco minutos, conversámos com eles, fizemos-lhes sentir que havia gente solidária, sorri­mos ao ouvir o seu “obrigado”. Findo esse tempo, eles terão sido calados, mas puderam ainda ouvir-nos durante mais alguns minutos, até que a polí­cia nos impediu de prosseguir.

A vigília, convocada por diver­sas associações (Aacilus, CasaViva, Gaia, Olho Vivo, Que Al­ternativas?, Solim, SOS Racis­mo e Terra Viva), difundiu um comunicado que, além de de­nunciar o repatriamento, su­blinhava que estes imigrantes “foram expulsos do seu país pela pobreza” e no nosso “fo­ram recebidos como crimino­sos, presos num centro de de­tenção, privados de liberdade”. O texto lembra que tais pes­soas “são vítimas das redes de tráfico” quando “apenas pro­curam uma vida melhor”, e faz o paralelo com os muitos por­tugueses que procuraram e continuam a procurar melhor vida noutros países. Conclui acusando a atitude do gover­no português de “criminosa” uma vez que “devolve os imi­grantes à miséria e às redes de imigração ilegal”, que as­sim se sentem incentivadas.

Lições da expulsão
Do caso dos 23 cidadãos mar­roquinos que acabaram deti­dos no Centro de Instalação Temporária do Porto há várias ilações a tirar: sobre a lei de imigração, o papel do gover­no de Sócrates, a figura do mi­nistro Rui Pereira, e, enfim, so­bre o ambiente geral em que Portugal está mergulhado. Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigra­ção ilegal implica o repatria­mento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se mo­verem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verda­deiras das migrações África-Europa.

Mas prossigamos. Na lei lê-se também que a ac­ção de deportação pode ser adiada, se os detidos colabo­rarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cance­lamento. Mal o ministro da Administração Interna decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriados, leia-se, devolvidos para as mãos dos mafiosos que acabaram de de­nunciar. Se se quiser combater realmente as redes de imigra­ção ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato com­pleto e autorização de resi­dência aos que colaborarem.

Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sa­bendo que vivemos no apre­goado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão pergun­tado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso – e uma de­cisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, de­pendente do espírito momen­tâneo do ministro da tutela e da sua sensibilidade própria. Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricio­nários ao governo, não pode continuar a existir.

Mas este caso pôs, ainda, a nu a sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a di­ferença entre a vida e a mor­te de muitos deles. Portugal preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos de­pois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas o tiro saiu-lhes pela culatra.Várias associações do Porto pediram para visitar os deti­dos, que estavam incomuni­cáveis. Nem resposta obtive­ram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marro­quinos. Mesmo ele foi impe­dido de entrar duas vezes: uma, no dia 22, quando os primeiros foram secretamen­te deportados; a outra, no fim da vigília de solidariedade. No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão.

Chegou-se a dizer que o pro­cesso estava sob “segredo de Estado”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos por­que havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa. Ou, tal­vez, o assumir que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, e o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe a lei e o humanismo. Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão agora impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imi­grantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espaço Schen­gen, com possibilidade de virem a fazer parte da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civi­lização ocidental”. Voltarão, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida. Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solida­rizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mo­bilizações, mas que não subs­crevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que critiquem algum aspecto da actuação governa­mental. Sócrates conseguiu.Mas é também o país do jor­nalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impe­dido de comunicar com os detidos e não protesta con­tra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.

Lições da mobilização
Denunciar a brutalidade da actuação do governo portu­guês neste caso concreto e exigir a alteração da lei cri­minosa que protege de facto as redes mafiosas de tráfico de migrantes foram as razões que motivaram a ideia de uma concentração na tarde de sábado, 9 de Fevereiro, na Praça da Batalha. Para que, enfim, se pugne por esse direito fundamen­tal que é o da livre circula­ção de seres humanos, sem esquecer que as migrações têm causas e que, essas sim, devem ser alvo de comba­te internacional. Consigamos que a miséria e a fome se transformem em me­mórias do passado e podere­mos deitar as fronteiras ao lixo.

O resultado foi o esperado, tendo em conta a qualidade da organização. Uma concen­tração boicotada por pessoas que não cumprem o que se comprometem a fazer, um evento acordado quase histe­ricamente por outras que o es­vaziaram de entusiasmo com a sua ausência de participa­ção, não poderia dar mais do que um encontro de amigos à sombra de duas faixas. Bonitas e certeiras, por sinal.

Deu, de qualquer modo, para distribuir centenas de co­municados semelhantes ao que se reproduz por estas páginas e uma centena de um outro texto, mais por­menorizado, sobre a ques­tão das migrações. Deu, também, para que se descobrissem novas cumpli­cidades e, acima de tudo, para aprender que entrar em coi­sas com organizações que, ao invés de basearem a sua exis­tência em lutas, se regem por agendas não é para nós.

1 comentário:

Anónimo disse...

¿Efecto llamada? ¿Efecto Caldera?