Expulsos pela pobreza, recebidos como criminosos
Início da mobilização
O desembarque, em Olhão, e o posterior encarceramento, no Porto, de 23 cidadãos oriundos de Marrocos e considerados ilegais foi a faísca que fez reunir, na CasaViva, respondendo a um apelo da recém-criada Rede Que Alternativas?, algumas pessoas e associações preocupadas com as questões da mobilidade humana. O objectivo era organizar uma acção que, partindo deste caso concreto, colocasse em evidência “a situação dramática em que se encontram centenas de imigrantes que foram vítimas de tráfico humano e que devem ser protegidas”, para além de desmascarar “as políticas de repressão na UE, de externalização de fronteiras”, que “favorecem a exploração desumana de homens e mulheres indocumentados”, como se podia ler no convite da Rede Que Alternativas?.
Um relato da vigília
Por volta das 15h30 do dia 23, uma semana depois, soa o alarme: o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) prepara-se para, ainda nessa tarde, proceder à deportação de mais alguns dos imigrantes detidos no Espaço de Acolhimento de Estrangeiros e Apátridas, Unidade de Santo António, no Porto. Os que chegam ao local pelas 16h30, não vêem sair ninguém. Por volta das 18h00, a advogada de alguns dos detidos informa que já só estavam seis marroquinos.
A deportação vespertina já tinha tido lugar. Cerca das 18h30, umas três dezenas de pessoas concentram-se junto ao portão de entrada do centro, respondendo ao apelo para uma vigília, decidida na noite anterior na sequência das notícias sobre as primeiras operações secretas, e ilegais, de deportação.
Distribuímos um folheto, também ele definido em cima da hora, questionando o ministro da Administração Interna, Rui Pereira, sobre as políticas de imigração europeias, e exibimos uma faixa com os dizeres: NINGUÉM É ILEGAL.
A vigília durou cerca de duas horas. Por volta das 20h30, o deputado José Soeiro tentou visitar os imigrantes para lhes entregar as mensagens recolhidas entre as pessoas que se manifestavam. Foi-lhe dito que eles já estavam a dormir.
Antes de desmobilizarmos, e já depois de marcarmos uma reunião para a segunda-feira seguinte para preparar uma manifestação para o dia 9 de Fevereiro, para exigir a alteração de situações como a presente, subimos a rua e, em frente ao bloco onde os marroquinos estavam detidos, tentámos comunicar com a ajuda de um megafone. Através da língua francesa e também em árabe, falado pelos compatriotas radicados em Portugal e presentes na vigília. Obtivemos resposta, em berros da janela. Durante cerca de cinco minutos, conversámos com eles, fizemos-lhes sentir que havia gente solidária, sorrimos ao ouvir o seu “obrigado”. Findo esse tempo, eles terão sido calados, mas puderam ainda ouvir-nos durante mais alguns minutos, até que a polícia nos impediu de prosseguir.
A vigília, convocada por diversas associações (Aacilus, CasaViva, Gaia, Olho Vivo, Que Alternativas?, Solim, SOS Racismo e Terra Viva), difundiu um comunicado que, além de denunciar o repatriamento, sublinhava que estes imigrantes “foram expulsos do seu país pela pobreza” e no nosso “foram recebidos como criminosos, presos num centro de detenção, privados de liberdade”. O texto lembra que tais pessoas “são vítimas das redes de tráfico” quando “apenas procuram uma vida melhor”, e faz o paralelo com os muitos portugueses que procuraram e continuam a procurar melhor vida noutros países. Conclui acusando a atitude do governo português de “criminosa” uma vez que “devolve os imigrantes à miséria e às redes de imigração ilegal”, que assim se sentem incentivadas.
Lições da expulsão
Do caso dos 23 cidadãos marroquinos que acabaram detidos no Centro de Instalação Temporária do Porto há várias ilações a tirar: sobre a lei de imigração, o papel do governo de Sócrates, a figura do ministro Rui Pereira, e, enfim, sobre o ambiente geral em que Portugal está mergulhado. Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigração ilegal implica o repatriamento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se moverem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verdadeiras das migrações África-Europa.
Mas prossigamos. Na lei lê-se também que a acção de deportação pode ser adiada, se os detidos colaborarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cancelamento. Mal o ministro da Administração Interna decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriados, leia-se, devolvidos para as mãos dos mafiosos que acabaram de denunciar. Se se quiser combater realmente as redes de imigração ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato completo e autorização de residência aos que colaborarem.
Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sabendo que vivemos no apregoado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão perguntado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso – e uma decisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, dependente do espírito momentâneo do ministro da tutela e da sua sensibilidade própria. Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricionários ao governo, não pode continuar a existir.
Mas este caso pôs, ainda, a nu a sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a diferença entre a vida e a morte de muitos deles. Portugal preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos depois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas o tiro saiu-lhes pela culatra.Várias associações do Porto pediram para visitar os detidos, que estavam incomunicáveis. Nem resposta obtiveram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marroquinos. Mesmo ele foi impedido de entrar duas vezes: uma, no dia 22, quando os primeiros foram secretamente deportados; a outra, no fim da vigília de solidariedade. No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão.
Chegou-se a dizer que o processo estava sob “segredo de Estado”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos porque havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa. Ou, talvez, o assumir que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, e o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe a lei e o humanismo. Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão agora impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imigrantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espaço Schengen, com possibilidade de virem a fazer parte da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civilização ocidental”. Voltarão, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida. Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solidarizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mobilizações, mas que não subscrevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que critiquem algum aspecto da actuação governamental. Sócrates conseguiu.Mas é também o país do jornalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impedido de comunicar com os detidos e não protesta contra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.
Lições da mobilização
Denunciar a brutalidade da actuação do governo português neste caso concreto e exigir a alteração da lei criminosa que protege de facto as redes mafiosas de tráfico de migrantes foram as razões que motivaram a ideia de uma concentração na tarde de sábado, 9 de Fevereiro, na Praça da Batalha. Para que, enfim, se pugne por esse direito fundamental que é o da livre circulação de seres humanos, sem esquecer que as migrações têm causas e que, essas sim, devem ser alvo de combate internacional. Consigamos que a miséria e a fome se transformem em memórias do passado e poderemos deitar as fronteiras ao lixo.
O resultado foi o esperado, tendo em conta a qualidade da organização. Uma concentração boicotada por pessoas que não cumprem o que se comprometem a fazer, um evento acordado quase histericamente por outras que o esvaziaram de entusiasmo com a sua ausência de participação, não poderia dar mais do que um encontro de amigos à sombra de duas faixas. Bonitas e certeiras, por sinal.
Deu, de qualquer modo, para distribuir centenas de comunicados semelhantes ao que se reproduz por estas páginas e uma centena de um outro texto, mais pormenorizado, sobre a questão das migrações.
1 comentário:
¿Efecto llamada? ¿Efecto Caldera?
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