Apontamentos históricos para a compreensão do sentimento nacional basco
Poucas vezes um acontecimento de solidariedade terá atingido de forma tão certeira o seu objectivo como a conversa que decorreu na tarde de 22 de Dezembro passado, dedicada ao povo basco e à sua luta. Quem teve o privilégio de estar na CasaViva a ouvir e interpelar Rui Pereira e alguns activistas da ASEH – Associação de Solidariedade com Euskal Herria saiu de lá com conhecimentos históricos e pinceladas de actualidade que ajudam a compreender definitivamente o sentimento nacional basco. Ora, quando se acredita que uma causa é merecedora de solidariedade, nada melhor do que partilhar o que se conhece, de forma a que a informação permita que novas pessoas possuam argumentação suficiente para ir desfazendo as inverdades que os poderes político e mediático paulatinamente inculcam.
Foi isso que aconteceu. Rui Pereira, jornalista e autor do polémico livro Euskadi - A Guerra Esquecida dos Bascos, cuja segunda edição foi, alegadamente, comprada quase na totalidade pelo Estado espanhol para a impedir de circular, abriu uma conversa enormemente pedagógica onde se debateram as razões históricas que conduziram ao conflito e a repressão de que é, actualmente, alvo um povo tão próximo de nós.
A “guerra do norte”, como lhe chamam os militares em Madrid, é o último processo político europeu com uma componente militar activa, agora que o IRA, por exemplo, baixou as armas. “É um conflito de baixa intensidade militar e altíssima intensidade política”, descreveu Rui Pereira. Euskadi foi o laboratório duma agenda repressiva mundial. Foi lá que se ensaiou a teoria da guerra total, que prevê operações militares de conquista e de controlo social das populações, através da policialização do conflito. A determinada altura, deixou de se tratar da luta dum exército contra um movimento armado e passou a ser apresentado como um caso de polícia, onde há criminosos que têm que ser detidos, porque atentam contra a democracia. Este véu, que transforma o conflito numa coisa que ele nunca foi, chama-se propaganda e está inscrita no topo do livro de instruções da guerra total que Espanha iniciou nos anos 80 e a que todo o Ocidente, entretanto, aderiu. A partir daqui pode-se fazer o que se quiser, testando os limites da tolerância internacional, que aumentou brutalmente depois de 2001. Tal como acontece hoje com Guantánamo e mais umas prisões secretas a soldo dos “aliados” já Euskadi tinha sentido na pele as deportações de pessoas sem culpa formada para “zonas de não direito”, territórios longínquos e sob domínio dos serviços secretos do Estado espanhol.
No seguimento do 11 de Setembro de 2001, as coisas pioraram. Mas já lá vamos. Antes, será melhor respeitar a ordem que a conversa seguiu e lembrar que o País Basco é uma entidade mais antiga do que Espanha. Ou que o priemiro rei basco foi coroado três séculos antes de D. Afonso Henriques. Militarmente, o conflito com Castela existe desde o século XIII. Em 1521, o reino basco de Navarra cai. Em 1580, cai Lisboa. Trata-se, referiu o jornalista, do “mesmo movimento expansivo do centro, de Madrid, para a periferia. Do mesmo modo, nessas periferias, em Portugal, na Galiza, na Catalunha, no País Basco, começa a enraizar-se o repúdio pelo centro. De todas essas zonas, apenas Portugal logrou, já no século XVII resolver a sua questão”. Os bascos, por exemplo, ainda não a resolveram.
Mesmo dominando militarmente a zona, os reis de Castela sempre respeitaram os chamados “foros”, a democracia rural basca, forma através da qual a sociedade se organizava e pela qual sempre manteve uma autonomia relativa. Esse respeito pelos “foros” durou até ao século XIX, mais precisamente até 1871, altura em que foram suprimidos, juntamente com a última fronteira que separava Espanha do País Basco. “Tudo isto foi pura conquista militar”, repetiu várias vezes Rui Pereira, para que não deixássemos de o ter presente. Surge aí um novo nacionalismo, uma reinvenção duma tradição basca encetada por alguns pensadores e que esqueceu Navarra. Os territórios desse nacionalismo são definidos como Euskadi e integram Vitória/Gasteiz, Bilbau/Bilbo e San Sebastian/Donostia. Tinha, como todos os nacionalismos do século XIX, características marcadamente racistas e dele emergirá o Partido Nacionalista Vasco (PNV).
Em 1936, depois do que conhecemos por guerra civil espanhola, nome recusado pelos bascos, a vitória das forças de Franco deu origem a uma desbasquização, onde se mudaram nomes a mortos, onde se proibiu a língua e o baptismo com nomes bascos, no que foi um dos processos mais violentos do fascismo europeu de descaracterização de comunidades”. Em 1958, um grupo de jovens estudantes de S. Sebastian/Donostia e Bilbau/Bilbo, descontentes com a inacção do PNV, formaram um grupo a que chamaram Ekin, o que significa “Fazer”. E agir era, de facto, o objectivo deste grupo. Se necessário, com recurso à vertente militar. É daqui que nasce a ETA, que viria a ter um papel preponderante para a “transição democrática” espanhola (que Juan Carlos impôs no seguimento da morte de Franco), ao fazer explodir Carrero Blanco , “delfim do ditador, que ficou, assim, sem o sucessor que tinha vindo a preparar”, como notou Rui Pereira.
Se as coisas melhoraram momentaneamente, foi porque se tornou difícil articular a repressão, agora que o Estado espanhol entrava no clube das democracias, agora que escasseavam ditaduras amigas e agora que surgiam, por toda a Europa, movimentos armados. As estruturas mantinham-se, que a “transição democrática” não lhes mexeu, mas os objectivos passavam a ter dois sentidos: por um lado, “evitar que os comunistas tomassem conta daquilo” e, por outro, “evitar que Espanha se separe”. Entra-se, assim, em plenos anos 80 do século XX, no que o jornalista apelida de “democracia a duas velocidades” que transformou o problema nacional basco num problema policial espanhol e em questão repressiva à escala internacional. Entra-se na fase da guerra total.
Em Dezembro de 2001, surge um novo desenvolvimento, quando Baltazar Garzón declara ao ABC, diário de direita do Estado espanhol, que “não existe envolvente da ETA. Tudo é ETA”. Inaugura-se, então, uma nova fase, a que traz a possibilidade de declarar ilegais organizações inteiras. Desde então, aconteceu isso mesmo a 290 associações, entre elas grupos de mulheres, de jovens, de moradores. Tudo é ETA.
O PNV, partido actualmente no poder, é, oficialmente, independentista. É um partido democrata-cristão mas que, em muitos pontos, está muito à esquerda do partido socialista de Sócrates, por exemplo. Se, por um lado agrupa grande parte do empresariado basco, por outro, é-lhe afecta a maior central sindical basca. É tão abrangente que, na sua indefinição, se limita a uma prática de administrador da situação que existe. É, na teoria, revolucionário, porque afirma querer uma situação nova e, na prática, do sistema, porque não provoca nem cria novas situações Tem-se valido do chamado pragmatismo para se manter no poder, mostrando-se como alternativa única ao PP, e baseando-se no vamos, por pequenos passos, caminhando para uma autonomia maior, até que se possa reivindicar algo mais. Mas não se livra de ter ajudado a instituir a ideia de que o problema do País Basco é um problema de paz, quando se trata, de facto, de um problema de justiça.
É que, ainda hoje, a situação repressiva é de tal ordem que não se reduz à vertente militar, antes pretende retirar todo o oxigénio que permitia ao sentimento basco respirar. “O independentismo basco construiu espaços alternativos que o Estado espanhol não conseguia controlar institucionalmente. Havia vida para além do Estado espanhol. Foi isso que se quis destruir”, alertou Rui Pereira. Por estes dias, “há cidades fechadas por check points, há tortura, há presos políticos espalhados por todo o território do Estado espanhol, há revistas a 50 pessoas por terem o aspecto errado. Decidem que uma pessoa é terrorista e ilegalizam a associação a que pertence”.
Depois da conversa, a música solidária, que, como se pode ler no blog da ASEH, “começou com o hip hop corrosivo dos Stregul para, depois, dar lugar ao punk dos Sobressaltos e ao metal dos Razer. Durante os concertos, um projector lançava vídeos sobre a parede que ilustram bem o dia-a-dia do povo basco e da repressão que vive”.
1 comentário:
imparato molto
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