O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Quando vierem tirar-me a casa já não haverá ninguém para me apoiar

8 de Julho, baixa do Porto

O segundo painel ficou incompleto, apareceu a bófia e levou a cola “de saco”. Não, não chegou a ir de saco mas chegou a ir para um saco, para as traseiras da carrinha da polícia municipal. Tal como o resto do mural, 4x5 folhas A3. Logo a seguir ao “chefe” se irritar e voltar atrás: Ai vocês querem assim, então vamos fazer a sério, avisou, arrebatando os A3 do chão e os flyers que apanhou mais à mão, enquanto um outro, de um magote de pelo menos quatro à paisana, tomava conta do frasco da cola.

Apenas se queria que o único a ser identificado não fosse em exclusivo quem passava a cola a pincel no sexto A3 dos 20 do mural improvisado, por cima de um cartaz, no já clássico edifício de esquina das ruas de Sá da Bandeira e Sampaio Bruno onde nada acontece há anos se não cartazes por cima de cartazes nas suas grandes montras de vidro. Começava o mural a ganhar forma quando um homem, de estatura baixa, cerca de 50 anos, calças de ganga e camisa clara, se esgueirou entre quem aplicava a cola e quem segurava o frasco, em brusca abordagem, mostrando o crachá da PSP como que à socapa. Tanto assim, que quem dava ao pincel julgou tratar-se de um senhor atento à aplicação da lei, por isso continuou a passar o pincel enquanto esse mesmo senhor lhe dizia que, independentemente da luta em causa, não podia ali colar cartazes. O dito senhor agente à paisana não gostou e exigiu a identificação do aparente insubordinado, cujos dados apontou em papel de rascunho.

Aí é que surgiu o “problema”: Se ele é identificado, eu também quero ser, reclamou de imediato um companheiro. Que não, respondeu o agente, só o vi a ele a pôr cola, que quando ele for chamado, aí, sim, podem ir testemunhar... Não podia ser, ele não estava ali sozinho. Mas só o vi a ele a pôr a cola, insistia o agente, já em direcção à carrinha estacionada. Então eu também vou colar... Ao ouvir tal, um dos outros agentes como que se assustou, chamou o chefe que se afastava e alertou que estava em vias de acontecer um desrespeito à autoridade. É nesta altura que o chefe, voltando atrás, desabafa, num impulso, que, assim sendo, a coisa seria a sério.

E antes, seria a brincar? ocorre-me enquanto apalavro este registo.

Continuando. A sério. O material e a comitiva, de um lado e do outro, seguiram para a carrinha. Do lado do tipo da cola, havia mais uns 10, já todos afiambrados à identificação. Acautelado o frasco da cola em saco plástico, não fosse entornar-se na carrinha, começou o levantamento do “material apreendido”: 15 A3, contou e escreveu o chefe. O colega, ao lado, avançava com o registo das identificações. O chefe observava o material apreendido, captando a mensagem que se pretendia transmitir. O processo começou a enrolar, o chefe a aconselhar o pessoal a pedir licença na câmara municipal, há lugares onde é permitido colocar informação sem pagar. De um momento para o outro, o chefe estava simpático. Já a publicidade não pode ser distribuída na rua, mas pode ser introduzida nas caixas do correio, explicava.

A conversa mudara de tom. E se na sua caixa de correio houver um papel afixado a dizer “publicidade aqui não” e lhe aparecer lá um flyer da vodafone, quem é que vai processar em primeiro lugar, é a vodafone, não é? insistia o gajo que insistira em ser identificado. A observação tinha a ver com a argumentação de que a câmara municipal devia processar o Filipe La Féria por os cartazes dos seus espectáculos no Rivoli estarem colados nos grandes vidros da montra do tal clássico edifício na esquina das ruas de Sá da Bandeira e de Sampaio Bruno. O que levara um dos agentes a perguntar se o que estávamos a fazer tinha alguma coisa contra Filipe La Féria. A confusão desvanecia-se. De um momento para o outro, acabando de ler o flyer, o chefe exclama, amarfanhando o auto que preenchia: Sabem que mais, vão à vossa vida. De imediato, o colega, que ia no registo da terceira testemunha, amarfanha também o seu rascunho. Estou solidário com a vossa luta, assegurava o chefe enquanto arrumava a pasta. Um dos colegas mais novo ainda lhe pediu: Diz àquele senhor para apagar as fotografias. Mas o chefe ou não ouviu ou fez de conta.

Seria a sério a solidariedade? Seria que passaram na carrinha tipo em fim de turno e não resistiram a interpelar quem colava cartazes na rua? Ou já estavam avisados da ocorrência?

A excessiva pormenorização do incidente com a autoridade pretende apenas registar o absurdo da defesa de leis “menores”, de que a própria autoridade aparentemente tomou consciência, face à ignomínia de outras leis, como as que o governo peruano se prepara para aplicar. Nessa tarde, na baixa do Porto, 8 de Julho, a causa era solidária com a luta dos povos indígenas do Peru, contra os decretos legislativos aprovados no seguimento do Tratado de Comércio Livre com os EUA. Em resposta ao apelo da União Socialista Libertária, a Iniciativa Libertária do Porto convocou uma Acção de Informação na baixa da cidade. Preparada quase em cima da hora, foi participada por email a cerca de 500 pessoas. Proporcionalmente, foi superior o número de polícias que ocorreu ao local quando comparado com o número de pessoas que aderiram à acção.

Ficou um mural completo na rua de Sampaio Bruno, num dos vidros da montra do edifício onde há anos não se passa nada no interior. E foram distribuídos, entre os poucos transeuntes que passavam na baixa às seis da tarde de uma quarta-feira de Verão, algumas dezenas de flyers com informação sobre a situação actual no Peru.

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