O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 6 de abril de 2008

Índice

O Pica Miolos

O espaço contra a autoridade

Abrigados mas livres

Saídas da casca

Ó ‘mor, compre-me para me estrear

O baldio

Eu disse que te dava uma pastilha elástica, mas nunca te prometi que não a mastigava primeiro

Outra Cimeira Europa-África

Expulsos pela pobreza, recebidos como criminosos

Não são as pessoas que atravessam as fronteiras, as fronteiras é que se atravessam nos caminhos das pessoas

Apontamentos históricos para a compreensão do sentimento nacional basco

Porta 65 entreaberta

Acção sindical: que representatividade?

Fim à proibição do cânhamo/cannabis

O Pica Miolos

Nasceu fez um ano: uma folha com opiniões e notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmen­te, seguindo critérios necessariamente tendenciosos, como todos os critérios editoriais de todos os media que se dizem imparciais. O segundo chegou na Primavera, manteve o forma­to A7, que se desdobra até um A2. O Verão trouxe o terceiro, com cd em mp3 das bandas que tocaram na CasaViva. O Pica Miolos muda de forma e a forma como apresenta as notícias e opiniões. No Outono, sem cd, adopta o tamanho A6 que se desfolha e insiste na produção própria.

De novo a Primavera, mas sem grandes esperanças. Na procura dum mundo onde possamos estar abrigados e livres, anuncia-se o Espaço contra a Autoridade para 11 e 12 de Abril. As ga­linhas rebeldes forjaram aproximações e deram bicadas por toda a cidade, em especial no Bolhão, onde o Rio que tudo ar­rasta quer fazer um centro comercial. Até que, humanamente, o Porto não seja mais do que um baldio.

Sócrates traz-nos memórias de infância quando esconde as verdadeiras histórias e a estória verdadeira da ligação África-Europa. Acolhem-se ditadores e expulsam-se os descartáveis, estórias de fronteiras que se atravessam nos caminhos das pessoas.

Com um pé no País Basco e outro na realidade do arrenda­mento jovem em terras lusas, os ouvidos nos alertas ao sin­dicalismo actual e o nariz preparado para a próxima MGM, animando a alma em ritmos mais ou menos acertados de concertos vários, mantemo-nos a participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica e bem comportada, de­monstrando de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

O espaço contra a autoridade

A ideia de espaço público constitui – já desde a anti­guidade clássica – a base da democracia enquanto prática quotidiana. Se, na antiga Gré­cia, esta nunca foi alargada à grande parte da população (mulheres, estrangeiros e es­cravos nomeadamente), ac­tualmente a sua inexistência é inerente à própria condição cidadã. A democracia, de di­nâmica passou a regime, e o espaço público – onde as grandes questões eram alvo de decisão por parte das pes­soas – foi destruído e “dividi­do” em fábricas e outros locais de trabalho, centros comer­ciais, clínicas psiquiátricas ou centros de dia. A vida passou a ser uma realidade espácio-temporal baseada na inces­sante satisfação de necessi­dades e não na reflexão, no debate, no livre pensamento, na possibilidade e responsa­bilidade de decidir sobre o que nos diz respeito.

A cidade é o palco por exce­lência deste processo de pri­vatização social da vida – não de individualização –, em que a relação com o outro depen­de essencialmente de uma ló­gica instrumental. O contacto com o próximo é cada vez mais determinado pelo que queremos pedir, pelo que precisamos, pelo que temos que dar, pelo que está escrito no contrato de trabalho, pelo que é definido pelas regras de boa educação, pelo o que poderei vir a escrever no livro de reclamações. Não pela du­pla vontade de exprimirmos a nossa individualidade e de recebermos a individualida­de dos outros, um privilégio que, sendo sujeito a um pro­cesso de institucionalização temporal – depois das 6 da tarde, antes das 8 da manhã – deixou obviamente de o ser. E quando a normalidade se tor­na a definição oficial da mais profunda instabilidade – do emprego que não há, mas que se tem de ter, das contas que não param de aumentar, mas que se têm de pagar, de uma vida da qual não se gosta, mas tem que ser vivida – passa a ser não oficial o conflito, nas suas múltiplas formas.

A criação de linhas de fuga e de resistência passou e passa pela organização de novas esferas semi-públicas de dis­cussão e convivência, que funcionem fora da lógica do Estado e capital. Segundo Hakim Bey, surge a possibi­lidade de grupos de amigos isolados assumirem uma for­ma mais complexa: “núcleos de aliados mutuamente es­colhidos, trabalhando (brin­cando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estrutu­ras mediadas. Depois quere­rá transformar-se numa rede horizontal de semelhantes grupos autónomos – depois, numa “tendência” – depois, num “movimento” – e depois numa rede cinética de “zo­nas autónomas temporárias” [T.A.Z]”.

É com base na ideia de que “não há um metro quadrado da Terra sem polícias ou im­postos…em teoria”, e de que é possível criar enclaves livres, “mini-sociedades que vivam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei”, que ocorrem, ao longo da déca­da de noventa, ocupações de casas e tentativas de organi­zação de centros sociais em Portugal. Apesar de ser um pouco redutor englobar todas estas experiências numa só tendência, podemos afirmar – em abstracto – que foram lu­gares propícios à espontanei­dade e aos acasos da vida quotidiana, tendo possi­bilitado encontros com pessoas de fora, partilha de saberes, a oportuni­dade de fazer as coisas de uma outra maneira e, desde logo, equacionar modos de agir no mundo.

O aumento da repressão, aliado à crescente afirma­ção das cidades enquan­to núcleos geradores de produtividade (e tam­bém a uma certa atitude de isolamento dogmático por parte de vários colec­tivos ocupas), determi­nou o fim de quase todos os centros sociais ocu­pados (a COSA vive!). Porém, este fenómeno é apenas um pequeno indício de um longo processo de transformação dos centros urbanos em cen­tros de negócios. Casos como o do Mercado do Bolhão, no Porto, e do Grémio Lisbonen­se, em Lisboa, tornam mais visível a tendência dominante para o desaparecimento de tudo o que destoa do modo de funcionamento empresarial. Mais do que nunca, e perante a multiplicidade de processos de objectivação do quotidia­no – muitos dos quais com um pendor fortemente repressivo –, a criação de espaços liber­tados (e que queiram libertar) deverá constituir uma das principais estratégias orienta­doras da luta anti-autoritária.

A 11 e 12 de Abril, a CasaViva abre-se a todas as pessoas e co­lectivos que nela queiram viver por esses dias e partilhar perspec­tivas e acções relacionadas com a questão da ocupação, aproveitan­do os dias europeus de acção de apoio a squats e espaços autóno­mos lançados pela rede Squat.net. O desafio é o habitual. Tragam ideias de acção (e tudo o que elas precisarem para serem levadas a efeito) e disponibilidade para par­ticipar nas acções pensadas por ou­tras pessoas. Venham preparados para serem co-gestores do espaço.

Abrigados mas livres

Sendo a mobilidade um sinal dos tempos, onde o local de trabalho e de estudo é agora um lugar cada vez mais temporário, onde com mais frequên­cia temos a necessidade de recomeçar as nossas vidas, evitando uma con­juntura socioeconómica e política cada vez mais repressiva, o que parece fazer sentido é desenvol­ver uma lógica do mer­cado de arrendamento mais favorável. Ao invés de continuar a favorecer os lobbies da construção, do betão e das imobi­liárias, onde a compra de casa atinge preços absurdos, num mercado que insiste em assim per­manecer, apesar da falta de poder de compra da classe média, apesar dos grandes centros urbanos transformarem o seu tecido em tecido devo­luto, criando as condicio­nantes para a sua ruína.

Entretanto, aumenta a promiscuidade das autarquias com bancos, imobiliárias e grandes empresas de construção. Em que estas megaestruturas económicas financiam as campanhas dos partidos po­líticos com mais representatividade no país e, à troca, viciam-se os concursos de arquitectura, enriquecendo cada vez mais os caciques da construção que dividem entre si o território nacional.

O que parece fazer sentido é rentabilizar os recursos existentes, preservar e re­ciclar, num esforço e numa lógica de arquitectura sustentável. No entanto, abrimos espaço a uma construção de arquitectura duvidosa e descaracteri­zante, caminhando para cidades sem história, com edifícios transformados em autênticas máquinas de gerar dinheiro e onde to­dos os intervenientes têm responsabilidades.

E, no meio deste absurdo, deixa de ser rentável para os senhorios manter as suas propriedades sem exage­rar no valor da renda e para os arrendatários aguentar esta despesa, onde com­prar casa já não é investi­mento, mas, sim, certeza de endividamento.

Afinal, o que parece fazer sentido é alienar todo o património edificado. Para quem e para quê? Não sei, se calhar para todos e para ninguém, pois todos precisamos de um abrigo, mas não precisamos de ser donos desse território, pois de recolectores passamos de novo a caçadores de uma vida melhor e mais diversifica­da como contraponto desta globalização intoxicante.

O que precisamos, de facto, é de nos sentirmos abrigados e livres e, nesse processo, tocar a Terra com cuidado.

Saídas da casca

As galinhas andavam dispersas. Orgulhosamente rebeldes em re­lação à voz dos que pretendiam ser seus donos, mas secretamente amarguradas por se sentirem so­zinhas nesse seu viver. Era, logica­mente, preciso satisfazer todas as necessidades que a sua condição de galináceo impunha, picar o chão, espolinhar, esgravatar ter­ra. E era, para elas, igualmente importante, sempre que sobrava tempo e energia, rejeitar a sub­missão e lançar umas bicadas ao carcereiro. Se, ao menos, houvesse mais que, como eu, sentissem vó­mitos à medida que iam sabendo mais sobre o mundo..., pensariam.

Foi sobretudo por isso que aquele dia foi mágico. Tantas caras nunca dantes vistas de outras que tam­bém apontavam o seu bico, as suas armas desafiadoras, ao alvo que a sua sensibilidade própria indicava. Algumas tinham expe­riências de encontros anteriores onde o cacarejar se tinha sobre­posto à ânsia de mudança. Aqui, com a tal magia que todas terão sentido, isso não tinha como acontecer. Ressalve-se, claro, que o cacarejar, aquilo que os huma­nos traduzem por falar, é a base sustentatória das investidas das galinhas rebeldes. Sem ele, não se chegará longe. O que, no fim-de-semana de 14 a 16 de Dezem­bro de 2007, ficou patente é que não tem, necessariamente, que se começar por esse lado. Havia, naquele segundo andar da Casa­Viva, ganas de picar. E começou-se antes por aí, ou não estivés­semos no ninho dessa outra ave insubmissa, o Pica Miolos. Nessa mesma noite, a primeira, umas poucas atreveram-se a, de forma propositadamente agradável à vista, lançar o seu grito contra a precarização da vida e a descar­tabilização dos indivíduos. Nem que fosse só por isso, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Foi bom ver que sábado trazia, de novo, sol. O pequeno-almoço prolongou-se por várias horas, como sempre acontece quando a refeição, entendida como mui­to mais do que a simples comida que a compõe, sabe bem. Du­rante esse tempo, ultimaram-se alguns pormenores e discutiram-se, de forma mais concreta, as acções que se tinham aflorado na conversa da noite anterior. Não seriam mais do que 13h30 quando, das portas da CasaVi­va, saíram cerca de trinta, com três carrinhos de compras e o grito mais ensurdecedor que o capitalismo pode ouvir, o da au­sência de preço. Estava-se, não o esqueçamos, em plena época natalícia e, ao mesmo tempo que três ou quatro perguntavam aos passantes qual a primeira coisa que lhes vinha à cabeça quando ouviam a palavra transgénicos, uma Loja Livre, três carrinhos de supermercado cheios de produ­tos gratuitos, percorria demora­damente a Rua de Sta. Catarina, do Marquês à Batalha. O impacto foi enorme. Muitas levaram coi­sas, várias conversaram sobre as motivações de tão bizarro acon­tecimento, uma ou outra terão encontrado ali uma prenda de natal que, repare-se, deixaram de comprar. Nem que fosse só por este último pormenor, tinha vali­do a pena. Mas foi por muito mais.

Chegadas à Batalha, as galinhas metamorfosearam-se. Os pre­gões mudaram com a roupa, os carrinhos da Loja Livre foram ca­muflados e apareceu, de repente, uma mancha de empresários que lançavam o PIDE (Partido Inde­pendente de Defesa do Empre­sariado). As mesmas que tinham descido Sta. Catarina, subiam-na agora, berrando por salários mais baixos. apelando à submissão a todos os ditames das empre­sas. Um flyer que acompanhava a marcha serviu para que quem andasse pela rua naquele sábado levasse para casa uma explicação sobre o que acabara de presen­ciar. Talvez algumas compreen­dessem o que se pretendia e, qui­çá, uma tenha concordado. Nem que fosse só por isso, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

De volta a Casa, decidiu-se, mesmo que nem se tenha falado disso, sen­tar, relaxar, tomar um café, fumar um e ouvir uma musiquinha. Mais tarde, quando a noite começasse a cair, sair-se-ia de novo, desta vez com uma mega piroca, ou não fossem também estes os dias que se se­guiam aos da assinatura do Tratado de Lisboa e da grande masturbação nacional que esse baptismo pro­vocou. Soubessem os portugueses o que significa verdadeiramente o tratado e talvez não andassem com o ego tão inchado por ter o nome duma cidade do seu país.

A estupefacção dos transeun­tes, se já tinha sido visível nas ac­ções anteriores, era, nesta, brutal. O que faria um pénis de dois metros a passear-se, em cima dum andor, por toda aquela distância que separa o Marquês dos Aliados? Ah! É o Trata­do de Lisboa!, chegaram a afirmar al­guns passantes, depois de verem as pancartas (“O Tratado tira-nos mais direitos laborais e liberdades civis, mas é NOSSO!”, ou “Nem sabemos o que diz o Tratado de Lisboa, mas é NOSSO!”), como se essa explica­ção lhes bastasse. Hoje vimos uma piça gigante por causa do Tratado de Lisboa, terão dito, sem mais explicações, em casa ou no café. Nem que fosse só pela dúvida que se lançou entre quem viu tal pro­cissão, pela necessidade interior que terão sentido para perceber o que se estava a passar, tinha vali­do a pena. Mas foi por muito mais.

Desceria o falo as ruas da cidade quando, na Baixa, se acendeu a árvore que, com o patrocínio da câmara municipal do Porto, pu­blicitava uma instituição finan­ceira em terrenos públicos. Por razões que a razão conhecerá, esse objecto, também ele fálico, atraía multidões àquela zona. Foi no meio dessa mole que a piroca se metamorfoseou em suporte de estrela de natal que encimava um presépio onde o menino que se adorava era o Euro, como sím­bolo de todos os conceitos que se podem dar à noção de dinheiro. Com personagens vestidos a ri­gor, essa pequena performance acabaria por chamar a atenção de muita gente, incluindo alguns polícias que nunca chegaram a perceber que o que ali se passava era exactamente aquilo que eles, a julgar pelas suas perguntas, não queriam que acontecesse: uma manifestação política. Um flyer ajudava a que se conseguis­se chegar até àqueles que deci­dissem deixar para mais tarde o parar para pensar. Afastados, pela ignorância, os únicos que podiam chatear, soltaram-se as gargantas ao som de poemas crí­ticos da nova rede da STCP que alguém se lembrara de escrever e musicar. Nem que fosse só pelo caricato episódio com a polícia ou por esse momento de quebra colectiva de vergonhas que foi o das Janeiras Sociais, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Nessa noite, alguém fez o jantar, alguém lavou casas de banho, alguém varreu algumas salas, cada uma lavou o seu prato, a autogestão adquiria novos sen­tidos e deixava a sua condição de utopia através da prática. Imperfeita, é certo, ou não vi­vêssemos em galinheiros onde se castra tudo o que vai nessa direcção. Entre tudo isto, e todas juntas, puderam maravilhar-nos com o humor e a qualidade de Pedro::Diana e de Thomas Bakk.

Não foi difícil, portanto, que, no domingo, acordassem com o sen­timento de que cada uma delas estava mais forte, mais conscien­te, mais disposta a colocar a sua asa sobre o corpo de qualquer outra que pudesse necessitar de ânimo em alturas em que ele se desvaneça. Não era o caso naque­le dia. Não depois de um sábado daqueles. Estavam cansadas, é certo e pouco estranho, principal­mente para aquelas que tinham aproveitado as primeiras horas de domingo para berrar por espaço e prioridade para os transportes não poluentes. O pequeno-almoçoo demorou ainda mais do que o anterior, como se houvesse uma necessidade qualquer de estarem juntas, calmas, aconchegadas.

O Sol já estava na sua curva des­cendente, já se tinha abortado mais do que uma acção que uma ou outra tinham preparado, quando as portas da CasaViva se voltaram a abrir para que todas saíssem em direcção ao Jardim das Virtudes, esse espaço amplo e lindíssimo que a incúria cama­rária tem votado ao abandono, policiado para que ninguém en­tre, de forma, talvez, a que a de­sabituação do seu usufruto não provoque saudades quando lá se construir alguma coisa. A decisão sobre o que lá se faria foi sendo tomada pelo caminho e, quando lá se chegou, saltaram-se muros e portões, estendeu-se a toalha, partilhou-se comida e não se quis sair sem deixar bem visível que se tinha lá estado a reapropriar um espaço subtraído à comunidade e que não se concordava com as prioridades do edil. Nenhuma se esquecerá, nos momentos que antecederam a invasão, do que disse aquela que passava por ali e que, sendo da zona, as ani­mou a entrar, confessando já ter feito o mesmo quando precisou daquele espaço. Nem que fosse por ver como o activismo de ci­dadania é praticado pelas pesso­as mais insuspeitas, tinha valido a pena. Mas foi por muito mais.

Voltaram extenuadas. Algumas, mais resistentes, ainda encontra­ram forças para largar balões com mensagens anti-consumismo numa das suas mais afamadas catedrais. Uma acção que, infeliz­mente, algumas já não consegui­ram acompanhar, mas que todas puderam conhecer, nem que fos­se por vias travessas, como sejam os relatos de alguém ou aquele vídeo delicioso que acaba logo a seguir a ver-se aquela moçoila, feliz por ter conseguido tornar-se proprietária dum dos balões que caíam, lançados sabe-se lá por quem, a dirigir-se à mãe Oh Mãe, mãe... Preenche o teu vazio com compras. Nem que fosse só por esta imagem tinha valido a pena. Mas terá sido por muito mais.


Domingo, para além dos sabores trazidos de Setúbal, acabou ao som de Abdul Moimême (sax), Henrique Fernandes (contrabai­xo) e Gustavo Costa (percussão), com o que se poderá referir como a súmula do fim-de-semana, ou a demonstração da validade dum encontro fortuito em que, a uma base pré-definida, se jun­tam os ingredientes mágicos da espontaneidade e do impro­viso, de forma a conseguir-se prazer e resultados concretos.

As galinhas estiveram juntas. Vol­tariam cada uma a seu canto, mas já sabiam que não esgravatavam sozinhas. Melhor, tinham gostado de esgravatar juntas. E pior não pode temer o carcereiro.


Fotos em

osencontrosdagalinha.blogspot.com
casa-viva.blogspot.com

Ó ‘mor, compre-me para me estrear

“Ó ’mor, não quer uns morangui­nhos frescos? Um euro e meio.” O pedido repete-se para quem se lhe atravessa à frente da ban­ca, no corredor principal, virado para a Rua Formosa. “Quando voltar a passar”, ouve em respos­ta. “Então, venha ter comigo que lhe arranjo uns bons.” Se o diálo­go é comum, dos pregões nem se fala. Há quem os repita ali, na­quele local, há mais de 40 anos. Mulheres sobretudo. Mas já se ouvem ali, naquele lugar, há mais de 150 anos, já então mercado de frescos, génese do Mercado do Bolhão edificado na segunda década do século XX.

Hoje, cento e cinquenta anos depois, Primavera 2008, o mer­cado está ameaçado de morte: a Câmara Municipal do Porto prepara-se para, a qualquer mo­mento, o ceder a privados, por 50 anos, para ali fazerem o que muito bem quiserem, provavel­mente mais um centro comercial.

Provavelmente, porque o povo não conhece o projecto, tão pou­co os comerciantes do Bolhão. Só os inquilinos das lojas do ex­terior do edifício são chamados comerciantes; os que estão no interior são ocupantes, pagam licença, são pouco mais de cen­tena e meia. Talvez por isso, Fer­nando Sá foi o primeiro, neste processo, a apelar à defesa do Bolhão. Fernando Sá é presiden­te da Associação dos Feirantes do Distrito do Porto e, em notícia do JN, perguntava em meados de Dezembro 2007: “onde estão os movimentos cívicos que em época de eleições se moveram pelo Bolhão, onde está a cida­de, onde estão os portuenses?”.

Faltavam poucos dias para a câ­mara supostamente aprovar um contrato de cedência do Bolhão, por 50 anos, à TCN. A oposição vo­tou contra. Razão: dúvidas sobre o contrato, muitas dúvidas. Um mês depois, quando o assunto foi à Assembleia Municipal, Joaquim Massena veio à praça pública de­nunciar a intenção de demolição do Bolhão e de destruição da sua essência e recordar que dez anos antes a Câmara lhe pagou um pro­jecto arquitectónico de requalifi­cação do mercado, ganho em con­curso público, no qual prevalece o edificado existente e a vivência que lhe dá alma. Um projecto da sua autoria aprovado pela autar­quia e pelo IPPAR, que custou ao erário público cerca de um milhão de euros e que Rui Rio arquivou, lançando um outro concurso com um júri sem arquitecto, tendo por objecto “concepção, projecto, construção, manutenção e explo­ração, mediante a constituição do direito de superfície, do espaço denominado ‘Mercado do Bo­lhão’” e duração “a propor pelos concorrentes, que não ultrapassa­rá os 50 anos”. Além da TramCro­Ne, do grupo holandês TCN, con­correu o grupo Amorim.

A TCN anuncia uma aposta de 50 milhões de euros na transforma­ção do Bolhão. Promete manter a traça original exterior e partilhar a área comercial tradicional com novas lojas, metade das quais de cultura, lazer e restauração, construir dois pisos subterrâneos para cargas e descargas e esta­cionamento para 216 automó­veis e um piso intermédio entre os dois actuais pisos, e criar ha­bitação nos torreões. Dois anos de obras, a acabarem a tempo do natal de 2009. Contrapartida para o município: um milhão de euros aquando da emissão da licença de construção e uma per­centagem dos resultados de ex­ploração a partir do décimo ano. E adeus Bolhão.

Os promotores do negócio gabaram-se: “Neste projecto, os comerciantes não são problema, mas a solução”. São apenas divulgados esquissos de um projecto exclusivamente avaliado pela vertente económica. “O perfil longitudinal aponta para a ocupação integral desde o rés-do-chão até às galerias. (…) O in­terior será todo demolido para dar lugar a cobertura de lajes e betão armado”, denuncia o arquitecto Joaquim Massena em entrevista ao JN, 9 de Janeiro último. Até à data, vieram a lume outros desenhos e variáveis versões da ocupação do interior. O certo é que as dúvidas persistem, no­meadamente sobre a existência de projecto arquitectónico e sobre o juízo do Igespar, enti­dade reguladora do patrimó­nio edificado que sucedeu ao IPPAR, cujo parecer positivo é imprescindível, por se tratar de um edifício classificado.

Quando Joaquim Massena veio literalmente à praça pública, em frente à Câmara Municipal do Porto, apelar à cidadania dos portuenses para se unirem e im­pedirem a destruição do Bolhão, dentro do edifício os deputados municipais aprovavam por 27 votos contra 26 a deliberação do executivo de entregar o Bolhão à TCN. Cá fora, Massena estava acompanhado de estudantes de arquitectura que, com outros, se ligaram e criaram o movimento de estudantes (manifestobolhao.blogspot.com) e que convoca­ram por email o encontro de uma meia centena de pessoas nessa noite de 21 de Janeiro. Dentro de 60 dias o contrato seria então assinado. Pela via legal, restavam 30 dias para o impedir.

Dias antes, num encontro da galinha na CasaViva, alguém do GAIA (Grupo de Acção e In­tervenção Ambiental) referira a urgência em fazer algo para cha­mar a atenção para a iminente privatização e transformação do Mercado do Bolhão no terceiro centro comercial da Baixa do Por­to. Aliadas as vontades, junto a Almeida Garrett, nessa fria noite de Inverno, anunciaram-se de­bates para divulgar o assunto no Ateneu Comercial e no Café Ceu­ta. Estava iniciada a mobilização em defesa do Bolhão.

2 de Fevereiro, primeira manhã de sábado de outras que se ha­viam de repetir em manifesta­ções de animado protesto contra a decisão camarária, as mulheres receiam perder o Bolhão. Há as conformadas, outras estão can­sadas. Algumas erguem os bra­ços: “O Bolhão é nosso!” É nosso e é desolador vê-lo assim tratado, em parte abandonado, em parte espartilhado em obscuros andai­mes. Com fios eléctricos como se cordas de estender a roupa fos­sem, cruzando-se no chafariz de quatro bicas a meio do terreno que outrora foi lameiro de quinta de condes.

Apesar de a Câmara Municipal do Porto o ter mandado construir em 1837, conta A. Martins em www.ippar.pt, “apenas em 1851 se ini­ciou a sua edificação no mesmo local onde já funcionava um mer­cado constituído por estruturas ainda demasiado precárias e tran­sitórias, num momento em que uma das artérias mais movimen­tadas da cidade – a Rua Sá da Ban­deira – começava a ser rasgada”. O mercado foi transformado no que é hoje pelo arquitecto António Correia da Silva. “Um dos primei­ros exemplares de betão armado construído na cidade”, disse, em recente tertúlia, Ma­nuel Correia Fernandes, arquitecto envolvido no movimento decidido a travar a demolição do Bolhão.

“Ocupando todo um quarteirão, o Mercado do Bolhão apresenta planta rectangular alongada, com linhas arquitectónicas e gramáti­ca decorativa de fundo neoclássi­co tardio, algo aproximado às do arquitecto José Marques da Silva (1869-1947), como a Estação de S. Bento, não só na linguagem arquitectónica como na própria monumentalidade exibida que, no caso do mercado, será acen­tuada pelos torreões colocados nas esquinas”, descreve o IPPAR. Os mesmo torreões que Rui Rio concede que se transformem em habitação, fronteiros a cente­nas de casas devolutas.

Nessa primeira manhã de Feve­reiro, como nas seguintes, a TCN dá as boas vindas nos quatro portões do edifício. No alto da fachada principal voltada a sul, o comércio e a agricultura perma­necem personificados em escul­turas de pedra (atribuídas a Bento Cândido da Silva), espreitando para a Rua Formosa, como que saudando quem entra.

“O Bolhão também é cá em cima”, gritam, lá dentro, as mulhe­res no varandim, ao ouvirem os bombos e as rimas no andar de baixo. Nessa manhã de sábado, algum povo mais foi ao Mercado do Bolhão, por mor que ele não venha abaixo. Para que todos saibam, para mostrar aos que resistem que estão acompanha­dos, para somar assinaturas a uma petição para que o mercado não seja destruído e substituído por um centro comercial.

Subida; Descida. Indicam azulejos nas paredes das esca­darias junto aos portões laterais, para quem entra pela Rua de Sá da Bandeira ou pela Rua de Alexandre Braga. Entre desci­das e subidas, diversas escadarias interligam os dois pisos do merca­do. Sobe-se pela esquerda, desce-se pela direita. Uma ordem que faria sentido noutros tempos, mas que já não importa, até porque algumas escadas estão intranspo­níveis, transformadas em arma­zém. Desce-se e no pátio central, subdividido em dois espaços ex­teriores por uma galeria coberta construída nos anos 40, de novo o acesso à Rua Formosa. Sobe-se e há galerias em parte desertas e mulheres entre legumes nas alas próximas da entrada a norte, Rua de Fernandes Tomás.

Mulheres cansadas. Que não co­nhecem o futuro do Bolhão, seu local de trabalho, ganha-pão e convívio. Não se sentem represen­tadas pelo Sr. Alcino, o presidente da Associação dos Comerciantes do Bolhão, que integra a comis­são de acompanhamento do pro­cesso de transição do mercado, a par do vereador Lino Ferreira e de Pedro Neves, engenheiro de obra da TCN. Algumas tornaram-se pre­sença assídua nas reuniões que a partir de Fevereiro passaram a realizar-se, às terças-feiras, ao fim da tarde, na Associação de Bene­ficência Familiar, na Rua Formosa. Para prepa­rar acções contra a demolição e privatização do Bolhão.

No dia 27 de Fevereiro, uma co­missão do que veio a tor­nar-se PIC (Plataforma de Intervenção Cívica), cons­tituída nessas reuniões, entregou na Assembleia República uma petição com muito mais do que as 7.500 assinaturas neces­sárias para o assunto ir a discussão no Parlamento mas um tanto menos do que as 50 mil anunciadas. Nesse dia, entrou no Tri­bunal Administrativo do Porto uma acção judicial para impedir o processo. Circunstancialmente, um grupo de quatro advoga­das aceitou intentar um processo judicial para impedir a autarquia de se desfazer do patrimó­nio físico e humano mais emblemático do Porto. Circunstancialmente mas não pro bono. Honorários: 15 mil euros. A acção foi apresen­tada em nome da Associação de Feirantes do Distrito do Porto, do GAIA e do MIC (Movimento de Intervenção Cívica). Oficialmente, porque oficiosamente foi apre­sentada em nome de uma série de portuenses. Foi aberta uma conta para receber donativos e iniciada a programação de eventos a fa­vor. Mesmo sem se saber de que acção se trata: alegadamente para não darem armas ao inimi­go, as advogadas escusaram-se a revelar o tipo de acção judicial interposta, conforme afirmaram numa das primeiras terças-feiras de Março. Na ocasião, confirma­ram aos presentes a inexistên­cia do contrato entre a CMP e a TCN e que, segundo o processo a que tiveram acesso, apenas 3% da actual área do Bolhão está reservada ao comércio de fres­cos no projecto da TCN.

No mercado, à quinta manhã de sábado, a animação esmoreceu. Nas reuniões de terça-feira, a CasaViva deixou de se represen­tar, por não se identificar com uma plataforma em que o “basismo é inimigo da acção”. Mas não perdeu o interesse pela causa. Também os jornais continuam atentos ao assunto. Persiste a incógnita em torno do desfecho do processo. Em 11 de Março, a TCN promoveu, no Rivoli, uma suposta sessão de esclarecimento sobre o projecto vedada aos jornalistas e exclusiva aos comerciantes e seus convida­dos. Mas não a todos: apesar de convidado de um comerciante, Joaquim Massena foi impedido de en­trar. O encontro não esclareceu ninguém. “Ainda nada está defini­do e de concreto o Bolhão só tem o modelo económico que viabiliza o investimento”, dizia, dias depois, Pedro Neves. “Existe um concei­to e estudo prévio desenvolvido para a elaboração da nossa pro­posta, estando neste momento em desenvolvimento o antepro­jecto”, afirmou o engenheiro da TCN a “O Primeiro de Janeiro”, em entrevista por email. “A apresen­tação ao Igespar será feita com a câmara brevemente.”

Não é ainda conhecida, o projecto idem, nem tão pouco o andamen­to do processo judicial. Do contra­to não se voltou a ouvir falar. Na terça-feira, 25 de Março, o Bolhão foi à Assembleia da República, os representantes da PIC foram recebidos pelos grupos parla­mentares. Anunciava-se uma ex­posição e um ciclo de debates no Orfeão do Porto com início a 28 de Março, já o Pica Miolos se pre­parava para a impressão. Os comerciantes continuavam a ocupar o interior do mercado. Pouco mais certezas, se não que o edifício necessita urgentemente de obras que a Câmara se recusa a pagar ou, tão pouco, a procurar financiamento para uma requali­ficação que é da sua responsabi­lidade.

A bem ou a mal, o Bolhão vai mudar. Resta ainda saber se as escadarias continuarão a interligar os dois pi­sos do mercado e se os azulejos “Subida” e “Descida” não se transformarão em peças deco­rativas sem indicarem caminho algum. Se assim for, deixar-se-á certamente de ouvir ao raiar do dia: “Ó ‘mor, compre-me para me estrear”.

O baldio

A cidade também se dissolve. Mesmo antes do amanhecer, con­serva ainda alguma da sua beleza. Vazia, deserta, só, mostra-se em todo o seu esplendor. Tão intenso, que certos locais não se deixam mais admirar, apenas espreitar, como se a rua fosse o local de um crime acabado de ocorrer. Seguindo o canto dos seus cantos mais escuros somos surpreendidos frequentemente pelos encantos dos cantos que se seguem e conseguimos por vezes perceber as ra­zões do nevoeiro e as outras possibilidades. É a melhor hora para a apreciar, ainda sem aquela luz intensa que nos faz semi-cerrar os olhos e torna mais difícil ver o que está bem à vista.

Pois o dia começa à hora marcada, e de repente, infalível e pontu­almente, rios de gente escorrem em direcção ao centro, uma baixa pressão que atrai todos os afazeres. A cidade passa a estar programa­da. Cada rua, cada praça, cada jardim tem uma função. Cada placa, cada rampa, cada traço no chão. Deixa de ser possível evitar os cons­trangimentos e os direccionamentos, as possibilidades impossibili­tam-se e o rio é contido nas margens para ele inventadas.

A cidade não deixou de ser bonita, mas agora esconde-se. Envergo­nhada pelo olhar de toda aquela gente de fora, que não a compre­ende e não a sente porque não vive nela. Vêm dos subúrbios e são turistas, quer tenham a máquina fotográfica na mão ou não, e a ci­dade sabe-o melhor que nós. É ela que anda a ser chulada.

Já não há tripeiros, caiu a Invicta! Roída por dentro, onde já nin­guém a defende, nem ninguém a quer. À sua beleza, história, alma, futura e passada, preferiram o condomínio fechado e a tv cabo pré-instalada.

Abandonada, drogada e confusa, comporta-se já não como uma cidade, mas como um daqueles cenários que antigamen­te se montavam para o cinema. Comporta-se como uma facha­da. Uma fachada tal como os seus governantes, representan­tes e outros pedantes. Esses também acordaram há pouco e têm medo da cidade com que sonharam.

Querem-na assim, seca e embalsamada, em exposição para quem pode pagar, e pagar-lhes. Não tarda, até a chorar os ve­mos, perante a ruína citadina… Tanto pior, preferimos baldios a centros comerciais e dependências bancárias.


Comissão de Moradores da Cidade do Porto Futuro

Outra Cimeira Europa-África

Já gastamos a Europa, agora te­mos de ir para África com mais empenho, não chega o trabalho das nossas farmácias a impedi-los de controlar o HIV, a malária, a po­liomielite e a doença do sono, não chega explorá-los com a nossa adaptável política de imigração, temos de definir novas fronteiras, já resultou no passado e desta vez não seremos nós a okupar, serão as empresas de alguém e a boa vontade das ONGs a dividi-los de novo, mas, desta vez, segun­do regras da economia e quando derem por ela já sugámos toda a riqueza e esqueceram que a sua força está na sua cultura.Eliminar qualquer suspeita de ter­rorismo e sair como libertadores de povos oprimidos por ditadores sem escrúpulos. Este método não deverá ser muito diferente do que por cá, de geração em geração, desenvolvemos e aperfeiçoamos. Palavra da UE

Assim se resumia, no blog da CasaViva, a conversa que por lá aconteceu a 7 de Dezembro de 2007, organizada pelo SOS Racis­mo. Nesse mesmo dia, iniciara-se, em Lisboa, a Cimeira Europa-África, apresentada como um grande sucesso da presidência portuguesa. Iniciara-se também outra cimeira, uma que pretendia desbravar novos caminhos “rumo a uma alternativa para os povos de África e da Europa”.

Cá e lá, na CasaViva, na cimeira oficial e na alternativa, discutiram-se, com diferentes perspectivas, bem entendido, possibilidades de futuro, lançadas por quatro te­mas principais: desenvolvimento económico; soberania alimentar, agricultura e recursos naturais; direitos humanos; migração. Dis­so se falou na CasaViva. Disso se falou também na cimeira alter­nativa. E de alguma coisa do que foi dito deixamos testemunho nos próximos parágrafos.

Os governos europeus, agindo através do Fundo Monetário In­ternacional, do Banco Mundial e, mais recentemente, da Orga­nização Mundial de Comércio, impuseram programas de ajus­tamento estrutural radicais aos Estados africanos. Depois de mais de duas décadas de desre­gulamentação do comércio e de promoção da obrigatoriedade de políticas económicas orientadas para a exportação, de endeusa­mento da liberalização dos mer­cados de capitais, da promoção do investimento estrangeiro e da privatização de serviços públicos, são evidentes os efeitos negati­vos. Não contente, a UE confronta os países africanos com o reforço dessas mesmas políticas através dos Acordos de Parceria Econó­mica (APEs) propostos.

A UE tem também participado ac­tivamente, através da imposição do modelo neoliberal, controla­do pelas grandes corporações, de agricultura industrial e de produção alimentar, na destrui­ção da soberania alimentar dos povos, anulando a capacidade política dos estados africanos para apoiar as suas agriculturas e proteger os seus mercados re­gionais. São políticas que promo­vem a privatização de sementes e da biodiversidade e que ajudam à propagação de Organismos Gene­ticamente Modificados e do con­ceito de direito de propriedade intelectual promovido por corpo­rações europeias e outras. Ideias que levam à criação de um mer­cado global de agrocombustíveis, incentivado por medidas como as metas fixadas pela UE em matéria de biocombustíveis e subsídios para a sua produção.

Perdendo campos de produção agrícola orientada para a ali­mentação em favor daqueles destinados aos novos combus­tíveis, estas políticas, que levam ao aumento brutal do preço dos cereais, promovem, duplamente, a fome e determinam uma utili­zação dos solos que favorece as corporações em relação aos agri­cultores e às gerações futuras.

Ouviram-se ainda denúncias da hipocrisia do discurso europeu sobre direitos humanos, como se as guerras onde são muti­lados não fossem combatidas com armas europeias, como se a impunidade das multinacio­nais e dos seus crimes não fos­se uma realidade, como, enfim, se os seres humanos e os seus direitos, não estivessem, em termos de prioridade, uns pata­mares abaixo dos sagrados in­teresses económicos.

Falou-se, por fim, do que, sem o sabermos então, nos voltaria a reunir, a questão das migrações e das políticas europeias que as enformam, orientadas por pre­ocupações securitárias e pela exploração de seres humanos, que criminalizam os migrantes e ameaçam os seus direitos huma­nos e sociais, quer na Europa quer em África, sem esquecer que a emigração em massa é, em larga medida, o resultado das políticas europeias que privam os africanos de outras oportunidades, violan­do os seus direitos económicos, sociais e culturais, especialmente o direito à alimentação.

Da conversa, ficaram as infor­mações, as várias formas de en­carar uma mesma realidade, di­versas perspectivas de solução. Ficou, acima de tudo, a noção de que a exploração colonialista se mantém, revestindo-se, ape­nas, de capas modernas que a ajudam a legitimar-se.

africa-europa-alternativas.blogspot.com

Eu disse que te dava uma pastilha elástica, mas nunca te prometi que não a mastigava primeiro

Sócrates decidiu que não há referendo para ninguém. Bem, talvez não tenha sido ele quem decidiu, mas a verdade é que foi ele quem transmi­tiu essa decisão. Portanto, foi também a ele que coube a tarefa de explicar o porquê do caminho escolhido.

Ora, o rapaz não fez por me­nos e decidiu tomar-nos a to­dos por parvos. Começou, na boa linha ditatorial de que vai dando cada vez mais exem­plos, por afirmar que “não se justifica fazer um referen­do quando há um consenso alargado na sociedade por­tuguesa quanto ao projecto europeu e quanto ao próprio Tratado de Lisboa”.

Então andaram estes homens todos, mais sábios que a so­ciedade portuguesa, decerto, a discutir, durante meses, se não anos, o que se escreve no Tratado e nós, que não participamos nessa discus­são e que, portanto, estamos menos conscientes das im­plicações reais do enunciado, estamos de acordo logo à par­tida? Ou será que a sociedade portuguesa é bastante mais evoluida do que os líderes europeus e não necessita de mais do que meia dúzia de no­tícias no jornal para cimentar a sua concordância?

Passando à segunda razão para não se referendar o Tratado de Lisboa, não podemos senão ter medo de a TSF ter deturpado propositadamente as palavras de Sócrates, quando lhe coloca na boca a frase “Fazer um refe­rendo aqui em Portugal teria implicações noutros países e é justo dizer que, no mínimo, agravaria os riscos de o tra­tado nunca entrar em vigor”. Ou então, o moçoilo perdeu o pudor e atreveu-se mesmo a dizer que a democracia que ele defende é um sistema em que, caso se desconfie que a res­posta do povo é diferente da vontade de quem manda, não se coloca a pergunta.

Não se trata de perguntar ao povo português. Aí, Sócrates, acha que o governo até ga­nhava, porque aproveitaria a discussão sobre o Tratado de Lisboa e sobre o que é isso da União Europeia, para “centrar o debate político num dos maio­res sucessos do Governo, al­cançados em Lisboa durante a presidência portuguesa”. Desta vez não será dos jornalistas da TSF, será de mim, mas acho que o que o primeiro ministro está a dizer é que até lhe dava jeito que as atenções fossem desvia­das para aí, de forma a que não se reparasse tanto no que, no entretanto, de mal ele fizesse. Trata-se, isso sim, de perguntar a povos mais imprevisíveis do que os tugas, gente que, por vezes, decide ir contra a voz do dono. Isso disse Sócrates quan­do afirmou, que tal “agravaria os riscos de o tratado nunca entrar em vigor”. Sei que esta repetição duma citação não é do mais ortodoxo, mas ainda não deixei de me maravilhar com a candura da frase.

O que eu gostava mesmo era de viver numa terra onde essa no­ção de primeiro-ministro fosse obsoleta. Mas, enquanto não se chega lá, já me ia bastando que o PM pugnasse por que o seu país fosse mundialmente conhecido por ser inflexível na aplicação das noções que o sus­tentam, como seja a de demo­cracia. E não por ser o que dá exemplo de autoritarismo de forma a que outros não tenham que sair embaraçados.

O terceiro argumento é mais uma cereja em cima do bolo. O que ele prometeu referen­dar foi a Constituição Europeia, não foi o Tratado de Lisboa. Podia ter utilizado isso antes: o que eu prometi referendar foi o aborto, não foi a inter­rupção voluntária da gravidez. Tão infantil que até dói.

Eu disse que te dava uma pastilha elástica, mas nunca te prometi que não a mas­tigava primeiro. Ah! como odiei o meu irmão quando ele me disse isso...

Expulsos pela pobreza, recebidos como criminosos

Início da mobilização
O desembarque, em Olhão, e o posterior encarceramen­to, no Porto, de 23 cidadãos oriundos de Marrocos e con­siderados ilegais foi a faísca que fez reunir, na CasaViva, respondendo a um apelo da recém-criada Rede Que Al­ternativas?, algumas pessoas e associações preocupadas com as questões da mobili­dade humana. O objectivo era organizar uma acção que, partindo deste caso concre­to, colocasse em evidência “a situação dramática em que se encontram centenas de imigrantes que foram víti­mas de tráfico humano e que devem ser protegidas”, para além de desmascarar “as po­líticas de repressão na UE, de externalização de fronteiras”, que “favorecem a explora­ção desumana de homens e mulheres indocumentados”, como se podia ler no convite da Rede Que Alternativas?.

Tudo o que nesse encontro, a 16 de Janeiro, se decidiu acabou, no entanto, por ser ultrapassado pela veloci­dade que o governo portu­guês imprimiu a esta reali­dade. De tal forma que se teve que antecipar as coisas para que a nossa solidarie­dade não se demonstrasse demasiado tarde.

Um relato da vigília
Por volta das 15h30 do dia 23, uma semana depois, soa o alarme: o Serviço de Es­trangeiros e Fronteiras (SEF) prepara-se para, ainda nessa tarde, proceder à deporta­ção de mais alguns dos imi­grantes detidos no Espaço de Acolhimento de Estrangeiros e Apátridas, Unidade de San­to António, no Porto. Os que chegam ao local pelas 16h30, não vêem sair ninguém. Por volta das 18h00, a advogada de alguns dos detidos infor­ma que já só estavam seis marroquinos.

A deportação vespertina já tinha tido lugar. Cerca das 18h30, umas três dezenas de pessoas concen­tram-se junto ao portão de entrada do centro, respon­dendo ao apelo para uma vi­gília, decidida na noite ante­rior na sequência das notícias sobre as primeiras operações secretas, e ilegais, de depor­tação.

Distribuímos um folhe­to, também ele definido em cima da hora, questionando o ministro da Administração In­terna, Rui Pereira, sobre as po­líticas de imigração europeias, e exibimos uma faixa com os dizeres: NINGUÉM É ILEGAL.

A vigília durou cerca de duas horas. Por volta das 20h30, o deputado José Soeiro tentou visitar os imigrantes para lhes entregar as mensagens reco­lhidas entre as pessoas que se manifestavam. Foi-lhe dito que eles já estavam a dormir.

Antes de desmobilizarmos, e já depois de marcarmos uma reunião para a segunda-feira seguinte para preparar uma manifestação para o dia 9 de Fevereiro, para exigir a alte­ração de situações como a presente, subimos a rua e, em frente ao bloco onde os marro­quinos estavam detidos, ten­támos comunicar com a ajuda de um megafone. Através da língua francesa e também em árabe, falado pelos compa­triotas radicados em Portugal e presentes na vigília. Obtive­mos resposta, em berros da janela. Durante cerca de cinco minutos, conversámos com eles, fizemos-lhes sentir que havia gente solidária, sorri­mos ao ouvir o seu “obrigado”. Findo esse tempo, eles terão sido calados, mas puderam ainda ouvir-nos durante mais alguns minutos, até que a polí­cia nos impediu de prosseguir.

A vigília, convocada por diver­sas associações (Aacilus, CasaViva, Gaia, Olho Vivo, Que Al­ternativas?, Solim, SOS Racis­mo e Terra Viva), difundiu um comunicado que, além de de­nunciar o repatriamento, su­blinhava que estes imigrantes “foram expulsos do seu país pela pobreza” e no nosso “fo­ram recebidos como crimino­sos, presos num centro de de­tenção, privados de liberdade”. O texto lembra que tais pes­soas “são vítimas das redes de tráfico” quando “apenas pro­curam uma vida melhor”, e faz o paralelo com os muitos por­tugueses que procuraram e continuam a procurar melhor vida noutros países. Conclui acusando a atitude do gover­no português de “criminosa” uma vez que “devolve os imi­grantes à miséria e às redes de imigração ilegal”, que as­sim se sentem incentivadas.

Lições da expulsão
Do caso dos 23 cidadãos mar­roquinos que acabaram deti­dos no Centro de Instalação Temporária do Porto há várias ilações a tirar: sobre a lei de imigração, o papel do gover­no de Sócrates, a figura do mi­nistro Rui Pereira, e, enfim, so­bre o ambiente geral em que Portugal está mergulhado. Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigra­ção ilegal implica o repatria­mento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se mo­verem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verda­deiras das migrações África-Europa.

Mas prossigamos. Na lei lê-se também que a ac­ção de deportação pode ser adiada, se os detidos colabo­rarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cance­lamento. Mal o ministro da Administração Interna decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriados, leia-se, devolvidos para as mãos dos mafiosos que acabaram de de­nunciar. Se se quiser combater realmente as redes de imigra­ção ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato com­pleto e autorização de resi­dência aos que colaborarem.

Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sa­bendo que vivemos no apre­goado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão pergun­tado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso – e uma de­cisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, de­pendente do espírito momen­tâneo do ministro da tutela e da sua sensibilidade própria. Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricio­nários ao governo, não pode continuar a existir.

Mas este caso pôs, ainda, a nu a sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a di­ferença entre a vida e a mor­te de muitos deles. Portugal preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos de­pois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas o tiro saiu-lhes pela culatra.Várias associações do Porto pediram para visitar os deti­dos, que estavam incomuni­cáveis. Nem resposta obtive­ram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marro­quinos. Mesmo ele foi impe­dido de entrar duas vezes: uma, no dia 22, quando os primeiros foram secretamen­te deportados; a outra, no fim da vigília de solidariedade. No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão.

Chegou-se a dizer que o pro­cesso estava sob “segredo de Estado”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos por­que havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa. Ou, tal­vez, o assumir que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, e o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe a lei e o humanismo. Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão agora impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imi­grantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espaço Schen­gen, com possibilidade de virem a fazer parte da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civi­lização ocidental”. Voltarão, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida. Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solida­rizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mo­bilizações, mas que não subs­crevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que critiquem algum aspecto da actuação governa­mental. Sócrates conseguiu.Mas é também o país do jor­nalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impe­dido de comunicar com os detidos e não protesta con­tra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.

Lições da mobilização
Denunciar a brutalidade da actuação do governo portu­guês neste caso concreto e exigir a alteração da lei cri­minosa que protege de facto as redes mafiosas de tráfico de migrantes foram as razões que motivaram a ideia de uma concentração na tarde de sábado, 9 de Fevereiro, na Praça da Batalha. Para que, enfim, se pugne por esse direito fundamen­tal que é o da livre circula­ção de seres humanos, sem esquecer que as migrações têm causas e que, essas sim, devem ser alvo de comba­te internacional. Consigamos que a miséria e a fome se transformem em me­mórias do passado e podere­mos deitar as fronteiras ao lixo.

O resultado foi o esperado, tendo em conta a qualidade da organização. Uma concen­tração boicotada por pessoas que não cumprem o que se comprometem a fazer, um evento acordado quase histe­ricamente por outras que o es­vaziaram de entusiasmo com a sua ausência de participa­ção, não poderia dar mais do que um encontro de amigos à sombra de duas faixas. Bonitas e certeiras, por sinal.

Deu, de qualquer modo, para distribuir centenas de co­municados semelhantes ao que se reproduz por estas páginas e uma centena de um outro texto, mais por­menorizado, sobre a ques­tão das migrações. Deu, também, para que se descobrissem novas cumpli­cidades e, acima de tudo, para aprender que entrar em coi­sas com organizações que, ao invés de basearem a sua exis­tência em lutas, se regem por agendas não é para nós.

Não são as pessoas que atravessam as fronteiras, as fronteiras é que se atravessam nos caminhos das pessoas

A recente expulsão dos mar­roquinos detidos na unidade habitacional de santo António veio não só expor uma lei in­compatível com os mais bási­cos direitos humanos, como também confirmar a natureza dos poderes governantes. Vi­vemos num Estado de excep­ção mais permanente para os mais pobres do que para os mais ricos em que leis, direi­tos, liberdades e garantias per­dem o seu significado perante os interesses de estado e da economia. Só assim se expli­cam as ilegalidades processu­ais cometidas neste processo, como a supressão informativa realizada às advogadas das pessoas expulsas, ou simples omissões jurídicas, como a recusa em aplicar a cláusula que adia a repatriação caso os detidos colaborem no des­mantelamento de redes de tráfico de imigrantes.

Porém, apesar da sua brutali­dade, este caso não constitui uma novidade. Em Portugal, há muito que se expulsam pessoas por não preencherem certos e determinados requisi­tos. Há muito que existem pri­sões para imigrantes – obra do actual presidente da república Cavaco Silva, enquanto chefe de governo – onde estes são detidos porque simplesmente estão onde não podem estar. Por nada mais. Há muito que se mantêm pessoas na clandesti­nidade, para que possam tra­balhar sem contratos e sob sa­lários de miséria. Há muito que se esqueceram as histórias dos avós e bisavós que entraram, permaneceram e trabalharam ilegalmente em França e ou­tros países da Europa.

Os tempos são outros. O país é parte integrante da União Eu­ropeia (UE) e, como tal, deve participar no seu processo de afirmação a nível mundial. Doa a quem doer. A organiza­ção da Cimeira UE-África, em que a tentativa de impor acor­dos de comércio livre se fez acompanhar pela negociação de parcerias na repressão à população imigrante; a parti­cipação no programa Frontex, um dispositivo de controlo fronteiriço, que inclui os bar­cos de guerra que patrulham o litoral, as vedações em Melila e Ceuta ou centros de detenção espalhados por toda a Europa; ou as rusgas realizadas pelo Serviço de Estrangeiros e Fron­teiras nos grandes centros ur­banos ilustram o papel portu­guês na conspiração europeia contra os imigrantes.

Manifestamo-nos hoje contra qualquer lei de imigração que não garanta, sem quaisquer li­mitações, o direito a viver livre­mente neste país. Não só devi­do à existência de necessidades imperativas que obrigam as pessoas a partir e deixar as suas famílias - a fuga às guer­ras, à pobreza e à destruição de recursos naturais, que alimentam as contas bancárias das grandes empresas transnacionais - mas também porque não queremos viver num mundo dividido em redomas mais impenetráveis para uns do que para outros.

Porque não são as pessoas que atravessam as frontei­ras, mas sim estas que se atravessam nos caminhos das pessoas, negando assim uma qualidade inerente ao humano: o desejo de ir além, de procurar, de conhecer. Tudo isto é muito anterior à existência de fronteiras. Tudo isto continuará quando forem abolidas.

Apontamentos históricos para a compreensão do sentimento nacional basco

Poucas vezes um acontecimen­to de solidariedade terá atingi­do de forma tão certeira o seu objectivo como a conversa que decorreu na tarde de 22 de De­zembro passado, dedicada ao povo basco e à sua luta. Quem teve o privilégio de estar na Ca­saViva a ouvir e interpelar Rui Pereira e alguns activistas da ASEH – Associação de Solidarie­dade com Euskal Herria saiu de lá com conhecimentos históricos e pinceladas de actualidade que ajudam a compreender definitivamente o sentimento nacional basco. Ora, quando se acredita que uma causa é merecedora de solidariedade, nada melhor do que partilhar o que se conhece, de forma a que a informação permita que novas pessoas possuam argu­mentação suficiente para ir desfazendo as inverdades que os poderes político e mediático paulatinamente inculcam.

Foi isso que aconteceu. Rui Pereira, jornalista e autor do polémico livro Euskadi - A Guerra Esque­cida dos Bascos, cuja segunda edição foi, alegadamente, com­prada quase na totalidade pelo Estado espanhol para a impedir de circular, abriu uma conver­sa enormemente pedagógica onde se debateram as razões históricas que conduziram ao conflito e a repressão de que é, actualmente, alvo um povo tão próximo de nós.

A “guerra do norte”, como lhe chamam os militares em Ma­drid, é o último processo polí­tico europeu com uma compo­nente militar activa, agora que o IRA, por exemplo, baixou as armas. “É um conflito de baixa intensidade militar e altíssima intensidade política”, descre­veu Rui Pereira. Euskadi foi o laboratório duma agenda re­pressiva mundial. Foi lá que se ensaiou a teoria da guerra total, que prevê operações milita­res de conquista e de controlo social das populações, através da policialização do conflito. A determinada altura, deixou de se tratar da luta dum exército contra um movimento arma­do e passou a ser apresentado como um caso de polícia, onde há criminosos que têm que ser detidos, porque atentam con­tra a democracia. Este véu, que transforma o conflito numa coi­sa que ele nunca foi, chama-se propaganda e está inscrita no topo do livro de instruções da guerra total que Espanha ini­ciou nos anos 80 e a que todo o Ocidente, entretanto, aderiu. A partir daqui pode-se fazer o que se quiser, testando os limi­tes da tolerância internacional, que aumentou brutalmente depois de 2001. Tal como acon­tece hoje com Guantánamo e mais umas prisões secretas a soldo dos “aliados” já Euskadi tinha sentido na pele as depor­tações de pessoas sem culpa formada para “zonas de não direito”, territórios longínquos e sob domínio dos serviços se­cretos do Estado espanhol.

No seguimento do 11 de Setem­bro de 2001, as coisas piora­ram. Mas já lá vamos. Antes, será melhor respeitar a ordem que a conversa seguiu e lembrar que o País Basco é uma entidade mais antiga do que Es­panha. Ou que o priemiro rei basco foi coroado três séculos antes de D. Afonso Henriques. Militarmen­te, o conflito com Castela existe desde o século XIII. Em 1521, o reino basco de Navarra cai. Em 1580, cai Lisboa. Trata-se, refe­riu o jornalista, do “mesmo mo­vimento expan­sivo do centro, de Madrid, para a periferia. Do mesmo modo, nessas perife­rias, em Portu­gal, na Galiza, na Catalunha, no País Basco, começa a enrai­zar-se o repú­dio pelo centro. De todas essas zonas, apenas Portugal logrou, já no século XVII resolver a sua questão”. Os bas­cos, por exem­plo, ainda não a resolveram.

Mesmo dominan­do militarmente a zona, os reis de Castela sempre respeitaram os chamados “foros”, a democracia ru­ral basca, forma através da qual a sociedade se organizava e pela qual sempre manteve uma autonomia relativa. Esse respei­to pelos “foros” durou até ao século XIX, mais precisamente até 1871, altura em que foram suprimidos, juntamente com a última fronteira que separava Espanha do País Basco. “Tudo isto foi pura conquista militar”, repetiu várias vezes Rui Pereira, para que não deixássemos de o ter presente. Surge aí um novo nacionalismo, uma reinvenção duma tradição basca encetada por alguns pensadores e que esqueceu Navarra. Os territó­rios desse nacionalismo são definidos como Euskadi e inte­gram Vitória/Gasteiz, Bilbau/Bilbo e San Sebastian/Donostia. Tinha, como todos os naciona­lismos do século XIX, caracte­rísticas marcadamente racistas e dele emergirá o Partido Na­cionalista Vasco (PNV).

Em 1936, depois do que co­nhecemos por guerra civil es­panhola, nome recusado pelos bascos, a vitória das forças de Franco deu origem a uma desbasquização, onde se mudaram nomes a mortos, onde se proi­biu a língua e o baptismo com nomes bascos, no que foi um dos processos mais violentos do fascismo europeu de desca­racterização de comunidades”. Em 1958, um grupo de jovens es­tudantes de S. Sebastian/Donos­tia e Bilbau/Bilbo, descontentes com a inacção do PNV, formaram um grupo a que chamaram Ekin, o que significa “Fazer”. E agir era, de facto, o objectivo deste grupo. Se necessário, com recurso à vertente militar. É daqui que nasce a ETA, que viria a ter um papel preponderante para a “transição democrática” espa­nhola (que Juan Carlos impôs no seguimento da morte de Franco), ao fazer explodir Car­rero Blanco , “delfim do ditador, que ficou, assim, sem o sucessor que tinha vindo a preparar”, como notou Rui Pereira.

Se as coisas melhoraram mo­mentaneamente, foi porque se tornou difícil articular a re­pressão, agora que o Estado espanhol entrava no clube das democracias, agora que es­casseavam ditaduras amigas e agora que surgiam, por toda a Europa, movimentos armados. As estruturas mantinham-se, que a “transição democrática” não lhes mexeu, mas os objec­tivos passavam a ter dois sen­tidos: por um lado, “evitar que os comunistas tomassem conta daquilo” e, por outro, “evitar que Espanha se separe”. Entra-se, assim, em plenos anos 80 do século XX, no que o jornalista apelida de “democracia a duas velocidades” que transformou o problema nacional basco num problema policial espa­nhol e em questão repressiva à escala internacional. Entra-se na fase da guerra total.

Em Dezembro de 2001, surge um novo desenvolvimento, quando Baltazar Garzón declara ao ABC, diário de direita do Es­tado espanhol, que “não existe envolvente da ETA. Tudo é ETA”. Inaugura-se, então, uma nova fase, a que traz a possibilidade de declarar ilegais organizações inteiras. Desde então, aconte­ceu isso mesmo a 290 associa­ções, entre elas grupos de mu­lheres, de jovens, de moradores. Tudo é ETA.

O PNV, partido actualmente no poder, é, oficialmente, in­dependentista. É um partido democrata-cristão mas que, em muitos pontos, está muito à esquerda do partido socia­lista de Sócrates, por exemplo. Se, por um lado agrupa grande parte do empresariado basco, por outro, é-lhe afecta a maior central sindical basca. É tão abrangente que, na sua inde­finição, se limita a uma prática de administrador da situação que existe. É, na teoria, revolu­cionário, porque afirma querer uma situação nova e, na prática, do sistema, porque não provoca nem cria novas situações Tem-se valido do chamado pragma­tismo para se manter no poder, mostrando-se como alternativa única ao PP, e baseando-se no vamos, por pequenos passos, caminhando para uma autono­mia maior, até que se possa rei­vindicar algo mais. Mas não se livra de ter ajudado a instituir a ideia de que o problema do País Basco é um problema de paz, quando se trata, de facto, de um problema de justiça.

É que, ainda hoje, a situação repressiva é de tal ordem que não se reduz à vertente militar, antes pretende retirar todo o oxigénio que permitia ao sen­timento basco respirar. “O inde­pendentismo basco construiu espaços alternativos que o Es­tado espanhol não conseguia controlar institucionalmente. Havia vida para além do Estado espanhol. Foi isso que se quis destruir”, alertou Rui Pereira. Por estes dias, “há cidades fe­chadas por check points, há tor­tura, há presos políticos espa­lhados por todo o território do Estado espanhol, há revistas a 50 pessoas por terem o aspecto errado. Decidem que uma pes­soa é terrorista e ilegalizam a associação a que pertence”.

Depois da conversa, a música solidária, que, como se pode ler no blog da ASEH, “começou com o hip hop corrosivo dos Stregul para, depois, dar lugar ao punk dos Sobressaltos e ao metal dos Razer. Durante os concertos, um projector lançava vídeos so­bre a parede que ilustram bem o dia-a-dia do povo basco e da repressão que vive”.

Porta 65 entreaberta

Um ano e seis dias depois da primeira vez e oito meses e dezas­seis dias depois da segunda, os frics voltaram à CasaViva. Desta vez a convite do movimento Porta 65 Fechada, que promoveu, em Fevereiro, um fim-de-semana de contestação ao Porta 65, o novo programa de apoio ao arrendamento jovem. A energia da Fanfarra Recreativa e Improvisada Colher de Sopa, vulgo FRICS, abriu as hostilidades no Porto. Imprevisto prenúncio: nesse mesmo mês, no último conselho de ministros, o gover­no alterou algumas das regras de acesso ao Porta 65 Jovem.

O Porta 65 Jovem substituiu o anterior Incentivo ao Ar­rendamento Jovem (IAJ) no final do ano. Mal foi anun­ciado, surgiu o Porta 65 Fe­chada, um movimento cí­vico apartidário contra as regras do programa. Razões da contestação: critérios de pré-selecção “absurdos”, ren­das máximas admitidas “desfasadas da realida­de”, taxa de esforço que “exclui a maio­ria dos jovens em início de actividade profissional”, redução da duração do apoio e orça­mento anual “claramente insuficiente”. A primei­ra fase de entrega de candidatu­ras ao Porta 65 Jovem decorreu entre 3 de Dezembro e 3 de Janeiro. Foram contabilizadas 3561 candidaturas, um número muito aquém das 20 mil es­peradas pelo governo.

O Porta 65 Fechada reforçou a contestação, reclamando a “alteração profunda” das condições de acesso ao novo programa, através da revo­gação do respectivo diploma legislativo. Nesse sen­tido, lançou uma petição on line e en­tregou, a 21 de Janeiro, uma carta a Cavaco Sil­va, pedindo a interfe­rência do Presidente da Repú­blica.

Para dias 9 e 10 de Feve­reiro, progra­mou um fim-de-semana de contesta­ção nalgu­mas cidades do país. Con­cretizou-se em Lisboa e no Porto, onde a tarde de domingo foi reservada a manifestações nas baixas das cidades.

No Porto, o desfile, de cerca de uma centena de pessoas, vindas de outras cidades do país, durou umas duas horas, da Praça da Batalha à Aveni­da dos Aliados. Indignadas com as novas regras de apoio ao arrendamento jovem, gritaram: "Porta 65 está fe­chada; é política de fachada". Dezoito dias depois, no últi­mo conselho de ministros do mês, o governo altera duas re­gras: aumenta os valores das rendas máximas admitidas e passa de 40 para 60% o peso máximo que as rendas po­dem ter no rendimento men­sal dos candidatos. Por outro lado, alarga a possibilidade de candidatura dos antigos beneficiários do IAJ a todas as fases do Porta 65. O Porta 65 Fechada “congratulou-se com algumas das alterações”, mas “criticou a duração do apoio, o orçamento e os valores da comparticipação das ren­das”, noticiou a Lusa.

FRICS com Porta 65 Fechada

Era já noite de sábado, 9 de Fevereiro, quando a Fanfar­ra Recreativa e Improvisada Colher de Sopa iniciou mais um memorável concerto num momento peculiar da sua carreira: um ano e seis dias depois de gravar o primeiro CD e a seis dias de fazer um ano que iniciou, em Aveiro, a Capitais*De*Distrito*Por*Ordem*Alfabética*Tour, con­forme enfatizou o Sr. Silva, percussões e organeta. Acom­panhavam-no, nessa noite, o Sr. Almeida, trompetes e asso­bios, o Sr. Costa, percussões, o Sr. Fernandes, contrabaixo, o Sr. Martins, saxofone, o Sr. Ricardo, sintetizador analó­gico, o Sr. Saldanha, bombar­dino e trombone, o Sr. Rocha, trompetes e percussões, e a Sra. Ana Luísa, guitarra e per­cussões, a estrear a presença feminina na fanfarra, como sempre coordenada pelo Dr. Hostilino, o Tele-Maestro.

Nessa noite, a CasaViva en­cheu, como um ano menos seis dias antes, no primeiro concer­to que acolheu dos FRICS, que então gravaram “AbraçoVivo”. Da primeira vez, em 3 de Feve­reiro de 2007, como da segun­da, em 24 de Maio seguinte, a fanfarra incendiou o público.No final, guitarra e contra­baixo acompanharam Antó­nia Reis na apresentação do hino do movimento Porta 65 Fechada, uma adaptação de "A Casa", de Vinicius de Mo­raes. Depois do jantar, houve projecção de vídeos do mo­vimento V de Vivienda que, em Espanha, luta pelo direi­to à habitação, mobilizando manifestações com milhares de pessoas, e de reportagens realizadas pelos media por­tugueses sobre o Porta 65 Jovem. O evento teve como principal objectivo mobilizar os jovens para a manifesta­ção da tarde seguinte.

porta65fechada.net
porta65.blogspot.com

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Acção sindical: que representatividade?

Que representatividade têm hoje os sindicatos? é a questão que inquieta José Nuno de Ma­tos e que o conduziu num estu­do de caso sobre o Sindicato de Professores da Grande Lisboa: Acção Sindical e Representa­tividade, publicado em 2007, pela Autonomia 27.

Num mundo de trabalho em crise com o modelo salarial, em que os empregos já não são para toda a vida e em que a precariedade aumenta à me­dida que decrescem os assala­riados efectivos, que represen­tatividade têm os sindicatos? Quando o Estado é o primeiro interessado no bom funciona­mento dos sindicatos e estes cada vez mais se assemelham a par­tidos políticos ou a empresas, caçando associados a troco de descontos em determinados pro­dutos ou serviços, que representati­vidade têm, hoje, os sindicatos?

Sobre isto se con­versou em 24 de Novembro último, quando José Nuno Matos esteve na CasaViva a apre­sentar Acção Sindi­cal e Representativi­dade. Não houve respostas mas o debate foi caloroso.

Algures entre as 178 páginas do livro, Zé Nuno salienta que o trabalho, ainda que conti­nue a ser um elemento cen­tral da vida das pessoas, não pode ser mais definido como a «questão» das sociedades, e considera que o militantismo deixou de ser um monopólio operário e sindical, adquirin­do um cariz multidimensional. No futuro dos sindicatos, só vê duas opções: “ou manter um mo­delo virtualmente representati­vo ou, pelo contrário, perfilhar novas formas de acção e repre­sentação, definindo-se como um novo movimento social”.
“José Nuno Matos lança um novo olhar sobre uma das es­truturas sindicais que provavel­mente mais irritação suscita na generalidade dos comentado­res. Mas faz mais do que isto. Na verdade este livro mete-se três vezes em ca­minhos por hábito indevidos a uma tese de mestrado”, escreve José Ne­ves, no prefácio. “O problema fun­damental que o autor aqui se co­loca não é tanto o do sindicalismo dos professores ou sequer o sindi­calismo mas sim o da representati­vidade em geral, oferecendo-nos o autor uma lei­tura tendencial­mente libertária e autono­mista da acção política.”

Acção Sindical e Representati­vidade, de José Nuno Matos, está disponível para leitura na CasaViva.

Fim à proibição do cânhamo/cannabis

A Marcha Global da Mariju­ana (MGM) é uma iniciativa apartidária, pacífica e sem fins lucrativos, organizada por cidadãos conscientes e infor­mados que consideram ter direito a consumir uma subs­tância que, no seu estado na­tural, não representa um risco tão grande como as substân­cias adulteradas que se ob­têm no mercado clandestino.

A MGM insere-se num movimento global que preten­de pôr fim à proibição do cânhamo/cannabis. Realiza-se sempre no primeiro sábado do mês de Maio, em mais de 200 cidades em todo o mundo.

O objectivo desta marcha é apresentar à sociedade argu­mentos e propostas de políticas alternativas ao proibicionis­mo vigente, para que o assunto seja seriamente discutido. A MGM defende que, tendo em conta que vivemos num país democrático e livre, os cidadãos devem ter direito a esco­lher com base em decisões informadas e responsáveis e des­de que não interfiram com a liberdade dos outros.

www.mgmporto.org
www.mgmlisboa.org
www.globalmarijuanamarch.com