O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

domingo, 9 de dezembro de 2007




Índice

O Pica Miolos

TIC arquiva processo Rivolição

La Féria dispensado de pagamentos

Fora da Lei

Quando a ecologia e a economia colidem

Quando a realidade ultrapassa a ficção

Levanta-te e faz-te ouvir

Porreiro, pá?

A nossa vingança é sermos felizes

Temos de fazer qualquer coisa, a malta anda distraída

Sobre o manifesto

Pirate Bay contra-ataca

Festa de Herodes

Para contrariarmos a esperteza da raposa no galinheiro e não ficarmos cada um a seu canto a esgravatar terra

O Pica Miolos

Começou por ser uma folha com opiniões e notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente, seguindo critérios necessariamente tendenciosos, como todos os critérios editoriais de todos os media que se dizem imparciais. O segundo chegou na Primavera, manteve o formato A7, que se desdobra até um A2. O Verão trouxe o terceiro, com cd em mp3 das bandas que tocaram na CasaViva. O Pica Miolos muda de forma e a forma como apresenta as notícias e opiniões, em exclusiva produção própria.

Este quarto número, no Outono, tem uma dedicatória especial ao querido líder, porque é impossível ficar indiferente à sua peculiar forma de agir e reinar. A propósito, não resistimos a publicar um artigo de João Semedo, pela oportunidade do discurso, uma opinião que nos chegou e tocou especialmente. Visitamos os direitos de autor na Baía dos Piratas e a pirataria na Ilha da Indústria Fonográfica. Questionamos a grande masturbação nacional, que retomaremos em breve. Foi porreiro, pá? Se não, levanta-te e faz-te ouvir e aparece no fim-de-semana de 14 a 16 de Dezembro na CasaViva. Aqui fica o convite.

Colectivos galegos estiveram por cá em Setembro, a propósito da reunião no Porto dos ministros europeus da agricultura. Mais recentemente, Mudar de Vida e Alambique. A Vintena Vadia continuou em ensaios e Salomé, de Óscar Wilde, tomou conta da casa de 12 a 21 de Outubro. Outubro também foi Justo com momentos deliciosos de culinária e histórias de Thomas Bakk. Houve cinema, que quase ninguém quis ver, nem as lindíssimas películas de Jean Vigo nem os documentários, à excepção do cinemapodrático. No entretanto, também se ouviu punk e outros sons, 25 bandas tocaram na CasaViva do Verão a Novembro. De regresso de férias, a Essalam, associação de imigrantes magrebinos e de amizade luso-árabe, tentou reunir em assembleia-geral, mas a polícia não deu sossego.

A CasaViva continua determinada no seu esforço de cidadania e usa o Pica Miolos para participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo vive e resiste.

TIC arquiva processo Rivolição

O Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto decidiu arquivar a queixa contra as pessoas que ocuparam simbolicamente o Teatro Rivoli, durante três dias em Outubro de 2006.

Os protagonistas da Rivolição não serão julgados em Tribunal, apesar de terem sido retirados do teatro pela polícia. Os ocupantes do Rivoli protestavam então contra a decisão de Rui Rio de entregar o teatro a Filipe La Féria, que até hoje não pagou um tostão à câmara municipal, como se depreende da leitura de uma outra notícia deste Pica Miolos.
O Tribunal de Instrução Criminal do Porto decidiu arquivar o processo, por considerar que as pessoas que ocuparam simbolicamente o Rivoli não cometeram o crime de introdução em local vedado ao público, pois tinham autorização para lá entrar.
A juíza considerou que "nunca os arguidos seriam condenados em sede de julgamento, também porque resulta dos autos que os arguidos estavam plenamente convencidos de que poderiam permanecer nas instalações do teatro".
Regina Guimarães, a autora da peça que estava na altura em cena no teatro e que foi uma das ocupantes, declarou ao
Jornal de Notícias: "Recebemos a notícia com agrado por várias razões, mas a mais importante é que o tribunal reconhece o carácter político do acto".

Depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ter dado provimento à providência cautelar da Plateia, confirmando a ilegalidade da “doação” do Teatro, sem concurso público, a um empresário do espectáculo, foi, agora, a vez do TIC colocar mais alguns entraves à deriva autoritária do autarca que retira casas a famílias, com cães e polícias de choque, baseando-se apenas em suspeitas; que persegue intelectuais, jornalistas e outros trabalhadores que com ele não concordem; que expulsa ciganos de terrenos que ocupavam há décadas para fazer o favor ao grupo económico que detém a Pousada do Freixo; que retira subsídios de trabalho nocturno aos cantoneiros; que ordenou à Polícia Municipal que detivesse arrumadores, os interrogasse e largasse longe; e que só dá subsídios a quem se abstiver de o criticar.

La Féria dispensado de pagamentos

O executivo da Câmara Municipal do Porto(CMP) decidiu que as produções de La Féria no Rivoli, para além do contratualizado facto de a autarquia assumir as despesas de manutenção, limpeza e segurança do Teatro, serão poupadas a contas que, também por contrato, deveriam ficar a cargo da Todos ao Palco, a empresa que dá cobertura legal à presença de La Féria no teatro da praça D. João.

Assim, há anúncios gratuitos na revista municipal Porto Sempre e no site da CMP. Apesar de se tratar de uma empresa privada, a Todos ao Palco também não paga as taxas de publicidade relativas aos dois cartazes de grandes dimensões afixados nas fachadas do Rivoli, nem as taxas de ocupação da via pública relativas à instalação de uma cruz na praça D. João I, alusiva ao espectáculo Jesus Cristo Superstar. A Todos ao Palco também
não gasta um tostão pela afixação de cartazes nos
mupis publicitários que a CMP tem espalhados por toda a cidade.

A explicação da CMP, para suportar estas despesas em nome de La Féria, que já obteve uma receita bruta que ronda o milhão de euros, é que a Todos ao Palco é tratada “como se fosse o próprio Rivoli”, de acordo com as palavras que o Público de 12 de Outubro coloca na boca de Florbela Guedes, responsável pelo gabinete de comunicação do executivo camarário.

Ninguém sabe, porque ninguém o diz, se há algum protocolo que vincule a autarquia a estas isenções, que mais não passam, assim, de um subsídio explícito à empresa de La Féria. Isto na terra da luta contra o terrorismo-disfarçado-de-subsídiodependência. Tudo o que se sabe é que há um contrato celebrado entre a CMP e a Todos ao Palco a 15 de Março, rectificado por um aditamento de 2 de Maio, sendo que nos dois documentos apenas é instituído que a câmara cede “os espaços, directa ou indirectamente, necessários à produção e realização dos espectáculos”, comprometendo-se a empresa a “suportar as despesas por si incorridas em publicidade e divulgação”.

Quando a CDU pretendeu discernir da legalidade deste procedimento, a maioria CDS-PSD chumbou a respectiva proposta, que o querido líder considerou “ridícula”. Nada de novo.

Fora da Lei

Rui Rio, cuja auto-propaganda quer fazer passar por autarca modelo, comporta-se como um fora da lei. Não é de hoje, vem de trás. O caso Rivoli é simplesmente mais uma confirmação. Começou com as irregularidades do pseudo-concurso através do qual entregou o Rivoli ao empresário La Féria e continua agora com o desrespeito da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que considerou estar todo o processo "profundamente afectado por ilegalidades", significando isso que fica suspensa a deliberação da CMP de atribuir a La Féria a concessão da exploração do Rivoli.

A decisão é clara para toda a gente: La Féria devia fazer as malas, regressar a Lisboa e libertar o Rivoli para que este possa retomar a sua vocação de teatro municipal, para a qual foi recuperado e equipado com dinheiros públicos. Mas o que é claro para todos, turva-se na mente rebuscada e perversa de Rui Rio. Aquilo que foi um concurso promovido, organizado e realizado pela CMP - e agora declarado ilegal, deixou de o ser e passou a ser um simples convite da câmara a La Féria. La Féria não é um concessionário, é um convidado da Câmara. E como é um convite, a companhia de La Féria manter-se-á no Rivoli até ao dia em que Rui Rio dê o convite por esgotado. Rui Rio igual a si próprio: quero, posso e mando. Leis? Juízes? Sentenças? Isso é para os outros respeitarem. Outros, a quem Rui Rio - o virtuoso, passa a vida a apontar o dedo.

Rui Rio não gosta da actividade cultural, prefere corridas de calhambeques e donas elviras. Além do mais para estas nem se perde tempo com essa fantochada dos concursos. A cultura é um desperdício de tempo e de dinheiro. Ainda por cima , os artistas têm essa mania estúpida de ser gente independente, com espírito crítico e que pensa pela sua cabeça. Na sua visão curta, Rui Rio acha que o povo não gosta e muito menos merece conviver com a cultura e as artes. Suspeita mesmo que lhes possa fazer mal ou até arrastá-los para maus caminhos. Diversão, espectáculo, entretenimento, fantasia, glamour, teatro de casino: isso sim, nisso é que vale a pena apostar e gastar o dinheiro da autarquia, naturalmente, para bem dos portuenses e do seu sossego. A vida é tão difícil que o melhor é enganá-la com o can-can e o cha-cha-cha dos La Férias e derivados. E, de engano em engano, lá chegaremos às próximas eleições. Nas quais, Rui Rio espera que o povo lhe seja reconhecido.

Há muito - ainda nem se falava no assunto e muito menos no concurso, que a cidade sabia que La Féria viria a tomar conta do Rivoli. Tudo estava combinado entre o autarca e o empresário. O concurso - a que estava obrigado, não foi mais que um disfarce, um estratagema, para esconder o negócio previamente acordado. Mas nem o povo é ceguinho, nem os artistas andam distraídos. A contestação foi grande, ninguém se calou. E aquilo que Rui Rio julgava serem favas contadas, tornou-se assunto de primeira página nos jornais e presença obrigatória nos alinhamentos dos telejornais. Tudo má vontade dos jornalistas, claro está: um deles até se atreveu a participar na manifestação contra a entrega do Rivoli. E para que constasse, Rui Rio não se esqueceu de o mandar filmar, bem ao jeito do antigamente. Para cúmulo, até os tribunais lhe recusaram razão.

Rui Rio está furioso e reagiu como é seu costume: bilioso e vingativo, reclama o afastamento da juíza que tem a seu cargo a apreciação de uma segunda providência cautelar sobre o Rivoli, acusando a juíza de falta de isenção e imparcialidade por ter assinado uma petição contra as obras de requalificação da Baixa do Porto, com as quais Rui Rio pretende ficar na História. A esta hora, também os juízes têm lugar reservado na galeria dos ódios de estimação de Rui Rio, lado a lado com artistas e jornalistas.

João Semedo
esquerda.net

Quando a ecologia e a economia colidem

As campanhas de sensibilização e as obras que têm permitido uma poupança considerável de água podem parecer, assim à primeira vista, com aquele olhar ingénuo de quem não sabe muito bem onde vive, uma coisa boa. Visto desta forma, sabendo que, em dois anos, de 2005 a 2007, se deixaram de gastar cerca de 6 milhões de metros cúbicos, poder-nos-íamos sentir tentados a exultar de alegria.

Puro engano. Esses seis milhões de metros cúbicos não foram poupados. Deixaram de ser vendidos! E as empresas, sim senhor, têm cartazes azuis e preocupações verdes, mas andam aqui para prosperar e, não tendo nada contra a poupança dos seus clientes, preocupam-se sobretudo com as quebras de receitas.
Vai daí, a Águas do Douro e Paiva (AdDP) decidiu aumentar o preço da água em 8,1%, a sentir já nas facturas de 2008 por todos os clientes dos 18 concelhos abastecidos por esta empresa.
Rui Rio, o querido líder de um dos maiores compradores da AdDP, achou o aumento “uma barbaridade”. Mais tarde, à saída de uma reunião extraordinária que juntou os 14 municípios da Junta Metropolitana do Porto, chegou a afirmar que “empresas de distribuição de água como a AdDP não devem ser empresas altamente lucrativas”.

E eis que dou por mim triste, não tanto pela brutalidade do aumento dum bem tão essencial, não tanto pela sua justificação surreal, mas por ter, por uma vez que seja, de estar de acordo com Rui Rio. Um de nós anda, decerto, avariado.

Ora, vendem-nos a pastilha de que só através de empresas é que os serviços conseguem ser fornecidos em condições satisfatórias, que só através da empresarialização do mundo é que os seus habitantes poderão aspirar a alguma felicidade. Depois, quando as coisas correm um bocado para o torto, querem-se colocar entraves ao mercado, penalizar os accionistas da empresa, sempre tão louvados, colocá-la num patamar semelhante ao do Estado, onde o lucro não deve ser o móbil principal do fornecimento de um serviço.

Se a proposta aparecesse noutra altura ou vinda de outro lado, não faltariam palavras sobre a obsolescência de tal discurso. Mas, afinal, parece que a competitividade já não é o bem supremo, parece que a satisfação dos accionistas não é já a razão principal para a boa gestão, quase que podemos acreditar que, afinal, o crescimento das empresas não anda de mão dada com a melhoria das condições de vida.

As razões para nos opormos à privatização dos bens e serviços públicos não estão em “livros bolorentos” nem em “ideologias passadistas”. Aparecem-nos em casa.

Quando a realidade ultrapassa a ficção

Crónica em jeito de reportagem da assembleia que não se realizou

Primeiro domingo de Setembro, meio da tarde, soou o batente no nº167 da praça do Marquês de Pombal. Não era a primeira vez na última meia hora, estava para começar uma reunião. Quando me aproximei da porta dei conta que estava entreaberta e que o Marquês ia a sair. Pé fora para o apanhar e dou com dois senhores fardados de azul. “A casa é sua?”, perguntam. “Só um momento”, pedi com um jeito de mão e apressando o passo em direcção ao cão. Recolhido do abandono na serra do Marão, não havia de se perder, agora e assim, de novo. Seguia decidido pela aventura, voltou contra vontade.

“A casa é sua?” A mesma pergunta. Os senhores agentes da autoridade batiam à porta para pedir contas da propriedade. Porque haviam recebido um telefonema a dizer que o cadeado daquela porta havia sido arrombado, alegaram. À porta, vindo de dentro, apareceu um dos proprietários. À porta, vindos de fora, continuavam a aparecer homens de olhar meio perdido, casa adentro. “O que é que se passa aqui?” O rumo das perguntas mudou perante as visitas. Passaram a interpelar quem chegava. Homens predominantemente morenos. O que fazem aqui, quem são? Imigrantes que vêm para uma sessão de esclarecimento sobre a nova Lei da Imigração, promovida pela Essalam. O que é isso? Uma associação de imigrantes do Magreb. E fazem aqui reuniões semanais? Não, é apenas uma reunião alargada, esta tarde. Para começar a que horas? Às 16h30. Quanto tempo demora? Talvez umas duas horas.

Chegam mais dois marroquinos. São inquiridos. Não, não têm papéis. Rachid Fathi aparece de dentro a ajudar na tradução. Fala árabe com os que chegam, um dos agentes enerva-se. Rachid explica-se em português. É ele quem dirige a Essalam, associação criada há dois anos no Porto para apoiar a integração dos magrebinos que vêm para cá à procura de trabalho e de melhores condições de vida. É marroquino, como grande parte das duas centenas de associados da Essalam. Rachid volta a entrar com os seus companheiros, deixa os documentos com a autoridade. Os agentes da PSP avisam que da próxima que os apanhem sem papéis chamam o SEF.
O interrogatório continuou, enquanto se aguardava quem traria os documentos que comprovavam a propriedade da casa. Sem provas de que a casa não fora ocupada, não arredariam. Receberam uma queixa, têm de averiguar. Como é que conheceram o Rachid? Quantas pessoas estão lá dentro? Há algum problema em entrarmos? Telefonemas para o SEF.

Um dos agentes acabaria por entrar, cerca de uma hora mais tarde, com a chegada de quem trouxe as provas de propriedade. Estacionado então, frente à porta, estava um Mercedes descapotável, de onde haviam saído três homens jovens com ar de quem andava a dar um passeio de domingo. Cumprimentaram os seus colegas fardados e mantiveram-se no terreno.
O agente que entrou foi um dos que batera o batente, horas antes. Verificados os papéis, pediu para ir à sala da reunião. Onde haviam estado umas dezenas de magrebinos, encontrou cadeiras sem gente e tapetes no chão. Por razões que a razão conhece, a assembleia da Essalam fora interrompida e os seus participantes foram saindo pela mesma porta por onde entraram, virada para o jardim da praça, enquanto decorria o suspeito espectáculo que há-de sempre provocar a concentração de carros da polícia. O número de curiosos ia crescendo com o número de agentes presentes no local. Aconteciam episódios paralelos, dois espectadores a pegarem-se e um carro a ser mandado parar, o condutor era cigano, viajava com raparigas alegadamente menores e não tinha documentos. Não era o único nessa tarde, mas foi o que teve menos sorte e que seguiu para a esquadra.

Algum problema? Problema é baterem à porta de uma casa a pedir a quem está dentro os documentos que comprovem que tem direito a estar em sua casa e a receber os seus convidados. Esta podia ter sido a resposta. Não foi. Mas a versão original desta história foi, no essencial, muito semelhante a este relato, salvaguardando-se as devidas traições que o tempo provoca à memória, sobretudo no que respeita à sequência das perguntas. O episódio durou umas duas lentas horas. Foram identificadas três pessoas da casa. A duas, foram pedidos os respectivos números de telefone. Ficou o aviso de que no dia seguinte, segunda-feira, o SEF poderia ligar. Não ligou.

Na porta daquela casa nunca existiu cadeado, pelo menos nos últimos 30 anos. Na porta daquela casa foi colocado um papel naquela tarde a indicar que era ali, CasaViva, que se realizava a segunda assembleia-geral ordinária da Essalam. O anúncio constava no blog da Associação dos Imigrantes Magrebinos e de Amizade Luso-Árabe. www.assoporto.blogspot.com Nada foi feito às escondidas. Ninguém é ilegal.

Levanta-te e faz-te ouvir

Mas fá-lo todos os dias. Assume que tens aceitado diariamente ser nada mais do que o espectador silencioso dum teatro de má qualidade montado para te entreter e cobrar chorudos lucros de bilheteira e não para fazer bom teatro. Reapropria-te da tua coluna vertebral. Porque tu sabes que é assim, toma o teatro, que ele também te pertence. Vaia os canastrões. Não precisas de armas nem de grande barulho. Simplesmente, levanta-te e faz-te ouvir. De espectador silencioso, passa a espectador, actor, encenador, dramaturgo... dum teatro do Caminho, não da Chegada, dum teatro que reflicta sobre si mesmo como instrumento da mudança, em vez de perpetuar o mal no sonho hipnótico de quem assiste passivamente.

São os media corporativos que te oprimem com a sua desinformação? Torna-te nos media alternativos. Sabes que as informações que te transmitem são falsas e manipuladoras? Desmascara-as, ri-te delas, proclama a tua verdade.

Tens medo de falar? Achas que, pessoalmente, vais tendo o suficiente e que, se deres nas vistas como dissidente, podes prejudicar-te e à tua família, cercear as tuas oportunidades de emprego e promoção e que as coisas, para ti, até nem estão assim tão más? Não te esqueças do que disse Brecht e que foi o que possibilitou o holocausto na Alemanha – se a coisa te vier bater à porta, depois pode não haver mais ninguém para falar por ti.

Achas normal que os mesmos que te condenam a salários congelados ou em atraso, ou salários com os quais não consegues pagar o débito mensal à banca, que no fundo é uma renda barata de casa, que não te chegam ao fim do mês, trabalho casa, casa trabalho e sempre a poupar e nem falo dos subsídios da doença ou da deficiência, para não me enervar, salários que estão na cauda do leque salarial europeu, aufiram rendimentos mensais astronómicos, acoplados a grandes reformas antecipadas e auto-concedidas, falo de políticos, de gestores, de empresários? Achas admissíveis estes dois pesos e duas medidas para a necessidade e a justiça? Quando lês que "Pai perdoa a filho 12,5 milhões de euros", isto não te passa um atestado de carneiro num sistema cuja injustiça atingiu as raias do absurdo?

Consideras que a democracia representativa, em que te dizem que vives, há muito deixou de ser democracia, de te ouvir e que, impávida como um robot programado de longe, avança a passos cegos e firmes para desmantelar todas as estruturas sociais, que se orientavam no sentido de vir a garantir trabalho, saúde, educação, habitação em igualdade de oportunidade para todos, para entregar tachos lucrativos aos privados nascidos ao sol duma classe de eleitos? Não te indigna profundamente que se sirvam dos teus impostos para financiar cimeiras para planear mais negociatas entre grandes accionistas e os políticos testas de ferro, defendidas por milhares de polícias de choque contra os que ousam levantar-se e protestar?

Aceitas como um facto consumado que a democracia representativa te usa para se justificar a si mesma deixando-te escolher entre a bosta e o excremento, entre o fogo e a frigideira, entre o mau e mais do mesmo? Que te promete reduções nos impostos, redução do desemprego e a tua participação democrática em referendos de importância vital e depois te trata como uma criança que não sabe o que quer, manda os teus filhos sem outra alternativa de emprego para a guerra contra a tua vontade, assina tratados à tua revelia e fomenta as deslocalizações de empresas, o desemprego e os teus baixos salários para favorecer a banca e o negócio multinacionais?

Achas suportável um verão que é inverno, um outono que é primavera, um horizonte onde agora a qualquer momento pode aparecer um tsunami, uma tromba de água, uma enxurrada de lama, um céu donde chovam pedras de granizo do tamanho de ovos de avestruz e uma terra que treme cada vez mais em todo o lado? Gostas de ver os oceanos a subir, as espécies animais a extinguir-se a grande velocidade, a herança biológica da nossa agricultura ancestral a ser dizimada por sementes predadoras para alimentar os lucros duma única multinacional e a herança do pesadelo que vais deixar aos teus netos marcada pela vergonha da tua inacção?

Acredita, não é para encher a tua carteira cada vez mais magra que os senhores da guerra e da indústria se mostram incapazes de organizar efectivamente a redução das emissões de gases e poluentes, ou de admitir em consciência e responsabilidade que os transgénicos não são uma solução, são apenas negócio para alguns, morte para a biodiversidade vegetal, aumento do uso de pesticidas e um risco imponderável para a tua saúde.

Estão demasiado ocupados a espalhar fósforo branco, urânio empobrecido, minas, químicos e vírus perigosos nos países que mantêm religiosamente como terceiro mundo através dos torniquetes ao desenvolvimento que são o FMI e a guerra.

Deixaste de te sentir no direito de considerar as conquistas da tecnologia para reduzir o trabalho humano como um bem da humanidade e o direito ao trabalho como um direito básico, inalienável e só sustentável pela redução dos horários de trabalho de todos e por uma divisão mais equitativa dos lucros através de salários para mais gente? Já te perguntaste como é que isso aconteceu?

Um mundo "civilizado"onde a maioria das pessoas precisa dum comprimido para adormecer, outro para acordar e outro para andar contente durante o dia, está muito doente. Pensas nos teus filhos à mercê do abuso do álcool e das drogas, nos rios e rios de gente quimicamente alienada para adaptar-se ao insuportável? Ou para alimentar negócios que são minas de ouro, tanto os legais como os ilegais, obscenamente interligados numa rede de proteccionismo e lavagem de dinheiros, com proxenetismo, tráfico de pessoas e de armas pelo meio?

Já pensaste que o preço dos produtos é simbólico? Na verdade, na realidade, tudo aquilo que consumimos tem um preço de custo perfeitamente irrisório. Isso não te transporta o raciocínio para lado nenhum, entre camionetas de laranja e tomate e outros excessos de produção deitados ao rio para manter os preços altos, sapatilhas saídas a dois cêntimos vendidas a cem e a duzentos euros e tanta gente esfomeada, tanta gente descalça?

Gostas de ter o dinheiro dos impostos altíssimos, que pagas muitas vezes a dobrar, empregue em submarinos, tanques, aviões, munições, casernas e tropas que não te servem para nada, usadas em apoios militares às manobras determinadas por interesses de negócios privados de accionistas gananciosos, em países longínquos cujos habitantes nem te atacaram nem nunca te fizeram mal algum? Não sentes um ligeiro cheiro a sangue inocente e a carne de civis queimada nas tuas mãos quando encolhes os ombros a essa realidade? A expressão "objecção de consciência civil" não te indica algumas possibilidades?

Se os teus filhos mais agressivos e egoístas, aqueles a quem tens de ralhar constantemente porque batem nos irmãos para lhes tirar os brinquedos, que te mentem para se justificar, faltam ao respeito devido a ti e a todos e demonstram a cruel e imatura incapacidade de se condoer com o sofrimento alheio, tomassem o mundo de assalto, transformassem os seus brinquedos de guerra num arsenal bélico a sério e se tornassem em despóticos senhores da guerra, usando os bancos como instrumentos de usura e coação, usando as verbas dos impostos que poderiam erradicar a fome, a doença, a ignorância, os nascimentos indesejados de crianças, em suma, a pobreza universal, em fundos para financiar as suas manobras pessoais de crianças enlouquecidas pelo egoísmo e pela ganância, e os media, que também controlassem, como meio para difundir as suas mentiras e nomear os seus bodes expiatórios, não seria isso um pesadelo dos mais macabros? Acorda: é a macabra realidade.

Recusa a esmola, as recolhas de fundos, os "lives aids", eles são o alívio momentâneo do teu desconforto e não fazem mais que ajudar o pobre a ficar como estava e os organizadores a ficarem mais ricos e famosos. Usa o teu voto como a preciosidade que ele é. Se necessário for, não o uses, porque deixou de ser um direito teu, há muito que é a corda com que te enforcam.

Mas levanta-te e faz-te ouvir.

anónima do séc. XXI

Porreiro, pá?

Depois da rejeição popular, em França e na Holanda, à Constituição, as elites europeias, através de comunicações oficiais pródigas em apelos ao debate e ao aprofundamento democrático, anunciaram o início dum período de reflexão. Esse tempo mais não foi do que o que mediou entre esse primeiro embaraço e o vislumbre de novas possibilidades de derrotar o inimigo e de impor a ordem que tinha sido recusada.

O nome não podia ser o mesmo, o que causava grande incómodo, já que o enorme cuidado colocado no baptismo original, para que o simples nomear deste acordo multilateral fosse, por si só, uma forma de legitimação, tinha sido em vão. Paciência, vai-se o epíteto Constituição, fica o conteúdo e até se ganha o desprendimento desse lastro incómodo que é o da consulta dos imprevisíveis povos europeus.

Sarkozy, um dos que mais necessitava de nova roupagem para a defunta, captou muito bem esta mensagem que Merkl tinha sugerido. Juntos impuseram a sua visão de que bastava um acordo breve que mantivesse a “primazia do direito comunitário” e da sua “economia livre e não falseada”, a “liberalização de capitais e serviços” e os seus efeitos sobre o mundo do trabalho, mas de forma não muito visível. Acrescentando um pouco ao que já existe em termos de tratados multilaterais que vão construindo a União Europeia (UE), tem-se o que se queria ter antes. A presidência portuguesa mais não teria, então, que redigir um mini-tratado que, somado ao emaranhado de tratados já existentes, fosse a redacção fiel do que tinha sido rejeitado. E, temos que reconhecer, Sócrates e os seus estiveram à altura.

A malta é que não gosta que façam de nós parvos, mas isso é coisa de somenos para os que vão cozinhando a forma de o mundo partir e repartir as suas riquezas. Eles gostam de cozinhar sozinhos porque sabem que quem parte e reparte é que escolhe a sua parte. Nem nos ouvem. Só dizem que tratado é tratado e temos que tratar de o cumprir, que assim é que as coisas podem andar para a frente e para a frente é que é o caminho, já lá dizia o outro, nem importa muito quem. E cumpri-lo, caro filho, significa agir de acordo com as normas que impõe. E impõe normas de organização política, de organização económica. Pois é, filho.

É legítimo defender quaisquer princípios de política e de economia. Os do neoliberalismo, por exemplo. Ninguém pode censurar que haja pessoas para quem a organização actual é a mais correcta possível. Que digam que não é bem assim quando a pobreza aumenta, quando a precariedade se generaliza, quando as despesas sociais do Estado diminuem, quando se mercantiliza a vida social. Pensam assim, vá-se lá saber porquê, mas podem fazê-lo, é direito deles pensar pelas suas cabeças e tentar arranjar forma de fazer vingar as suas ideias. Se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém. O problema é que, ao vingarem, vingaram-se de todo o tempo de espera e, através do cumprimento do tratado, impedem que haja outra via para o desenvolvimento económico e social que não seja a de fortalecer os mercados e de privilegiar o investimento e os fluxos de capital privados.

Trazendo a coisa para a mesquinhez da vida real, os eleitores de um país podem votar maioritariamente num candidato com um programa marxista. Pode parecer irrealista, mas é um direito dos eleitores pensarem pelas suas cabeças e tentar arranjar forma de fazer vingar as suas ideias. Se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém. A questão é que o candidato, depois de eleito, não pode aplicar o seu programa. Senão, lá está, viola o tratado e tratado é tratado e temos que tratar de o cumprir, que assim é que as coisas podem andar para a frente e para a frente é que é o caminho, já lá dizia o outro, nem importa muito quem.

A malta é que não gosta que façam de nós parvos, mas isso é coisa de somenos para os que vão cozinhando a forma de o mundo partir e repartir as suas riquezas. Eles gostam de cozinhar sozinhos porque sabem que quem parte e reparte é que escolhe a sua parte. Nem nos ouvem. Mas deviam, ao menos, saber que ninguém gosta de passar por parvo, muito menos quem o é, e deviam arranjar formas mais subtis de tornar os seres humanos obsoletos. E, mesmo que concordasse com o conteúdo do tratado, que há quem concorde, vá-se lá saber porquê, mas podem fazê-lo, é direito deles pensar pelas suas cabeças, se calhar até têm razão, eu acho que não, mas isso sou só eu a achar, não diz nada a ninguém, esta falta de cuidado bastaria para que me opusesse.

A nossa vingança é sermos felizes

Alambique já destila

Se a CasaViva tivesse rosto, teria corado quando ouviu dizer que as conversas promovidas pelo CCA conseguem reunir 20 a 30 pessoas no Clube Aljustrelense, em Aljustrel, Baixo Alentejo. No Porto, uma conversa anunciada na CasaViva dificilmente atrai uma dezena de pessoas. Como aconteceu no sábado, dia 6 de Outubro, a propósito do lançamento de Alambique.

Alambique é uma nova publicação, confeccionada pelo Centro de Cultura Anarquista (CCA) Gonçalves Correia, em Aljustrel, e que reflecte o seu primeiro ano de actividade no Clube Aljustrelense, onde o projecto assentou arraiais. “A necessidade de dar a conhecer o que fazemos, de sair portas fora tornou-se ao longo deste tempo algo imperativo. Não apenas com vista a um alcance maior, mas para quebrar com a passividade de nos fecharmos num getho, numa tribo, com os mesmos de sempre”, lê-se no editorial, que termina assim: “Nesta nossa (des)construção afirmamos não apenas a crítica ao insaciável capitalismo e autoritarismo que nos rodeia. Queremos também, informal e livremente, que a nossa festa e o nosso companheirismo não seja a alienação que nos querem impor, mas a revolta com que queremos aprender a viver”.

O anarquismo é tema de seis das 20 páginas de Alambique (formato A4, p/b). Duas a fechar, dedicadas a António Gonçalves Correia (1886-1967), cuja vida se cruza e se funde com o emancipar das ideias anarquistas, com as lutas anarco-sindicalistas das minas de Aljustrel, São Domingos ou Lousal, com as lutas dos camponeses do Alto ao Baixo Alentejo e com os vários grupos e jornais anarquistas de Portalegre, Évora, Odemira ou Cercal do Alentejo. Caixeiro viajante, vegetariano e tolstoiano, a sua figura perdura ainda na memória de muitos alentejanos.
As outras quatro páginas a propósito do anarquismo foram retiradas de “Days of War, Nights of Love. Crimethink for Beginners”, 2001 CrimethInc Collective (USA), e correspondem a um artigo intitulado “Ressuscitando o anarquismo como uma abordagem pessoal à vida”, que desmistifica os fantasmas que o tema ainda desperta, com afirmações tão simples quanto a seguinte: “Na nossa vida diária, somos todos anarquistas. Sempre que tomamos decisões por nós mesmos, sempre que assumimos a responsabilidade pelos nossos actos em vez de os deferir a algum poder superior, estamos a pôr o anarquismo em prática.”

Os transgénicos são outro tema que se desdobra em outros dois artigos: um em defesa da acção directa do movimento Verde Eufémia, em Silves; e uma entrevista a Fernando, da Colher Para Semear, Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais, em que, entre outras questões, são referidos os malefícios para a saúde consequentes do consumo de transgénicos.
A repressão policial sobre manifestantes anti-fascistas no 25 de Abril de 2007, em Lisboa, merece também a atenção especial de Alambique: “os dias não estão para a inércia”. Por isso mesmo, a contestação da indústria do medo que é a guerra e a manipulação de informação, registando dois debates ocorridos no Clube Aljustrelense: um sobre o assassinato do repórter de imagem espanhol José Couso, em Bagdad, logo após a invasão do exército dos EUA; outro sobre o terrorismo de Estado na Rússia e a guerra na Tchetchénia. Dois assuntos que também passaram pela CasaViva.
Dos temas abordados, falta apenas referir “Em frente pela porta das traseiras”, peça do grupo de teatro algarvio te-Atrito em homenagem a Jacques Prévert (1900-1977), cuja representação foi um sucesso no Clube Aljustrelense. Um trabalho encenado por Rita Neves, interpretado por Leonor Macedo e Pedro Monteiro e musicado por Igor Martins. O público ocorreu de tal maneira que houve quem ficasse à porta sem lugar para assistir ao espectáculo.

Quando haverá um outro espectáculo no Clube Aljustrelense ou quando sairá um novo número de Alambique são incógnitas à data. A única certeza é que o CCA Gonçalves Correia quer continuar a fazer jus ao nome que escolheu e assim “estreitar as afinidades libertárias e procurar divulgar através de várias iniciativas públicas e abertas a todos diversas questões e problemas que combatam a apatia, o medo e o conformismo que nos sufoca e dêem viva voz ao protesto social”.

www.goncalvescorreia.blogspot.com

Temos de fazer qualquer coisa, a malta anda distraída

Mudar de Vida provocou discussão na CasaViva

Mudar de Vida é um projecto típico de falta de paciência: é preciso fazer uma ruptura com o sistema em que vivemos. Foi José Mário Branco quem primeiro apresentou o jornal popular. Se de facto o virá a ser, o tempo o dirá. A dúvida ficou da conversa provocada pelo lançamento do nº1, na CasaViva. Certo é que o novo jornal, deliberadamente não registado e que não está nas bancas, se quer popular. “Não tenho dúvidas de que será popular pela sua característica, pela sua expansão, não sei”, afirmou o jornalista Rui Pereira. Zé Mário Branco gostava que o jornal chegasse aos pobres: “Quero falar e aprender política com essas pessoas”. Colectivizar a produção é o objectivo expresso no manifesto, publicado em separata. A questão divergiu opiniões e tomou grande parte da discussão. Em defesa das galinhas e doutras presas. “Não estamos aqui para falar das nossas diferenças, mas para nos concentrarmos no que nos une”, apelou Rui Pereira. Acabou dispersa a discussão. Para o mês que vem há outra? Essa a intenção dos autores do jornal. À mesa, estava também o jornalista Renato Teixeira, no papel de moderador. Segue-se um apanhado do que ficou dito, sábado, 27 de Outubro.

O manifesto de Mudar de Vida é assumidamente anti-capitalista e anti-imperialista, avisou José Mário Branco. Apela à rebelião, algo consagrado na Constituição Portuguesa. “Vocês estão com um gajo zangado”, estado de espírito, aliás, do conjunto de pessoas que lançou o Mudar de Vida. “Também não temos receitas para a mudança e temos grandes dúvidas, dúvidas de caixão à cova, mas o certo é que há uma degenerescência do movimento operário e temos de conversar sobre isso, juntarmo-nos e tirar algumas ideias comuns que passem à acção. Temos de passar à acção, porque só conversar é coisa de intelectuais. Temos de fazer qualquer coisa, a malta anda distraída. Daqui não vai sair a salvação do mundo, mas pode ajudar.”
Rui Pereira apanhou o mote: “A malta está convencida da invencibilidade do império, esse é o perigo. Cada um tem o seu modesto contributo. Pelo facto de não conseguirmos desabar o império, não quer dizer que não possamos fazer o que pudermos”. A malta “quer garantias das revoluções, como dos electrodomésticos que compra”, ironizou o jornalista. Porque o século XX está cheio de revoluções frustradas. E a malta também “não sabe o que quer da revolução”. Mas “estarmos aqui a falar é fazer pela mudança. Ou será missa para convertidos?” Independentemente das dúvidas, garantiu: “Palavra de honra que lá estou depois da revolução!”

Se a conversa de momento era missa para convertidos havia de se voltar a questionar mais para a frente, no encerrar da discussão. Como fazer chegar o jornal a todos? Para além de quem frequenta a CasaViva, o Círculo de Artes e Recreio, em Guimarães, ou a Velha-a-Branca, em Braga, três espaços, ditos alternativos, onde o jornal provocou discussão a norte. A expectativa da equipa do jornal é que cada edição mensal desencadeie discussões que nos levem a mudar de vida.
No início, José Mário Branco citou taxas sócio-económicas como o desemprego, 500 mil pessoas, o que, por envolvimento familiar, atingirá um milhão e meio de portugueses. Apontou o dedo para o Estado, que se retira da sua função social com a ajuda de quem se diz socialista. E serviu-se de indicadores da economia mundial para exemplificar o desequilíbrio existente: as 500 pessoas mais ricas do mundo ganham por ano o equivalente a 527 milhões de pessoas. “Temos de tirar consequências da nossa insuportabilidade de não sermos capazes de viver bem com isto”, acrescentou.
Da assistência, Sérgio Lopes lembrou que as características do capitalismo mudaram e que o patrão se dispersa na abstracção dos números, pelo que a mudança de vida talvez já não passe apenas pela colectivização da produção. Eduarda Sá questionou que meios de produção vamos colectivizar: “Não me interessa colectivizar aviários, fábricas de carne, não me interessa perpetuar certos meios de produção. As razões ecológicas não podem ser ignoradas”.

Do lado da mesa, Renato Teixeira respondeu que há um discurso ecológico oportunista do capitalismo, que é preciso destruir. “Nas teses dos últimos congressos do CDS e do BE, não há diferenças no que respeita à ecologia”. “Discordo da secundarização da luta ecológica”, arrebatou António Alves da Silva. “O capitalismo é visceralmente contra a ecologia. O capitalismo é um sistema esquizofrénico. A luta dos transgénicos é para mim uma luta fundamental de vida. Já não lhes bastava ter o monopólio do pensamento único, também têm o monopólio da vida. É preciso falar não de uma luta, mas de lutas.”

“Discordo um bocado de Renato”, contrapôs Rui Pereira. “Temos de buscar entre nós afinidades que nos unem. A esquerda divide-se muito, como disse a Eduarda, e o capitalismo une-se muito. O Paulo Esperança pôs o dedo na ferida: Mudar de Vida só pode ser um projecto federador. Não sabemos se vai ser ou não um jornal popular pela sua expansão. Mas ai do Mudar de Vida se não for um projecto embrionário. O império não apodrece, come-se, é autofágico. Estamos a acumular forças, há um mínimo que nos compete fazer.”
“Não chamem democrática a uma sociedade que tem pensionistas a receber menos de 500 euros por mês e bancos com milhões de lucros. Esta democracia não nos interessa. E não temos problemas em atacar a esquerda do sistema”, agitou Renato Teixeira.
”Estamos a propor uma mudança na questão fulcral, na questão do poder. Quero uma democracia a sério. A diversidade das lutas não está em causa, o que faço é distinção entre as lutas”, afirmou José Mário Branco. “Os meios de produção nas mãos de todos, é desta democracia que falo. No núcleo desta diversidade há uma luta fulcral: a colectivização da produção”, insistiu. “Não se trata de desvalorizar lutas, mas da distinção do carácter historicamente nuclear de uma e o carácter social de outras.”
”Não se pode colectivizar sem pôr em causa os meios de produção”, repetiu Eduarda. “Não podemos ficar obcecados pela colectivização, temos que nos preocupar com outras questões.” A ecologia voltou a ser tema. Renato caiu em tentação: “Quando vou trabalhar oito horas por dia e penso nas horas que vou trabalhar toda a minha vida, sinto-me um frango”.

As divergências aguçaram-se. Rui Pereira segurou o discurso: “O debate está mortiço na forma e interessante no conteúdo”, comentou. “A burguesia tomou o poder nos finais do século XVIII, pela igualdade para todos. E criou uma sociedade mais desigual que todas.” Ao ponto de se dizer que “melhor do que não ser explorado é ser explorado”, é sinal de trabalho. “O uso do homem pelo homem é um problema seríssimo. Não se transformam sujeitos sem se transformar a sociedade. É aqui e agora que se pode mudar, pela conversa.” Impulsionada pelo Mudar de Vida.
As críticas ao jornal emitidas pelos presentes incidiram na forma do discurso do manifesto, considerado “muito denso”. “Não tem um discurso para todos”, lamentou António Alves da Silva, para quem “a propaganda está para a democracia, como a violência está para as ditaduras”.

Ficou a ideia de que não basta entregar jornais, é preciso criar fóruns para discutir o Mudar de Vida.
Em Guimarães, onde o jornal fora apresentado no dia anterior, os participantes resolveram na altura agendar dois outros debates, um sobre a guerra que se anuncia no Irão, outro sobre um problema local de abastecimento de água. No Porto, perguntava-se: em que outros espaços, que não alternativos, o jornal, que quer chegar ao povo, se vai apresentar? Em resposta, a provocação de José Mário Branco: “É fundamental politizar a vida, não deixar que nos comam as papas na cabeça. Organizem-se, por favor!”

www.jornalmudardevida.net

Sobre o manifesto de Mudar de Vida

Em primeiro lugar, temos que dizer que nos agrada o tom revolucionário de todo o Manifesto, condensado na frase “queremos mudar o mundo, não remediar o capitalismo”. Demarca-se, assim, quer do PCP e da CGTP, que acusa de serem – e, pior, quererem ser – meros gestores do sistema actual, não se apresentando, portanto, como verdadeiras alternativas, quer do Bloco de Esquerda, que, implicitamente, acusa de não ter ideologia e, de forma explícita, de se basear em causas parcelares, ainda por cima facilmente digeríveis. Serão, em suma, apenas formas de encarreirar pelas ruelas construídas pela vitória do lucro sobre todas as coisas as pessoas que têm sentido crítico e sentem um mal estar profundo com o estado do mundo. Ora, esta crítica, para além de nos parecer certeira, raramente é feita de forma tão clara.

O texto fundacional do jornal popular Mudar de Vida tem ainda a sagacidade de não se esquecer de trazer para a luz da discussão uma outra dessas verdades que, de tão verdadeiras, nunca chegam a ser ditas, de forma a que fiquem no baú obscuro do esquecimento, até que cessem de ser pensadas e, logo, deixem de ser verdade. Lembram, assim, que os sacrifícios que nos impõem, e que nos dizem existir para possibilitar o atingir desses amanhãs que cantam, “não são medidas temporárias para superar a crise. Fazem parte do programa neoliberal posto em prática pela União Europeia (...). São o modelo de sociedade que nos querem impor”.

Assim sendo, afirma o manifesto com clareza, a acção tradicional da esquerda já não funciona. Será preciso inventar novas formas de luta, com a lucidez de querer participar em batalhas por interesses imediatos e objectivos parcelares, na esperança de que potenciem a união e a organização para o que chamam “lutas superiores”. Mas também com o cuidado de não se metamorfosear em “comissão de melhoramentos”, ou seja, sem nunca esquecer a guerra no seu todo, sem nunca perder de vista a vontade última de transformar a sociedade.

Por fim, não se deve deixar sem referência o facto de os autores do Manifesto renegarem a via eleitoral como meio para a derrota do capitalismo, chegando mesmo a dar crédito à “abstenção activa”, coisa, cremos, nunca ouvida fora dos círculos libertários.

Mas o Manifesto não é, a nossos olhos, um mero acumular de prazeres. Há, em primeiro lugar, a questão da linguagem. Este é um assunto recorrente e, como todos os assuntos recorrentes, não resolvido. Há quem acredite que é preciso cuidar da forma de colocar as questões, de maneira a conseguir ser mais apelativo para gente sem formação política suficiente para não se sentir repelido pelo jargão. E há quem defenda que as coisas têm um nome, que chamá-las por esse nome é a forma correcta de dar formação política a quem não a tenha e que tudo o que assim não seja mais não são do que cedências a quem quer diabolizar determinados termos. No Pica Miolos, seguimos a primeira via. O Manifesto do Mudar de Vida segue a segunda.

Para além disso, afirma que “não há outras forças motrizes da mudança social” para além do proletariado. Apesar da questão da posse dos meios de produção ser central para a socialização da propriedade, não acreditamos que seja a mais central. Aliás, não nos parece que exista uma questão central. Todas as lutas que ponham em causa o valor supremo do lucro, da concentração de riqueza e que coloquem em seu lugar o ser humano e o planeta são igualmente nucleares e este igualmente deverá ser tomado no seu sentido literal. O exemplo está na CasaViva, casa que se mantém ocupada há ano e meio com o acordo dos proprietários. Uma colectivização temporária da propriedade privada gerida por um grupo de responsáveis. Não esperou pela posse dos meios de produção.

Para os autores do Manifesto, “é dentro das empresas que o capitalismo manifesta toda a sua brutalidade”, esquecendo, logo à partida, os que nem sequer têm acesso às empresas, os descartáveis, os desocupados, repetindo uma das asneiras do movimento sindical tradicional, que não se lembra que os desempregados também são trabalhadores. Sem emprego, mas trabalhadores ainda assim. Esquecem, da mesma forma, todo um rol de vítimas da tal “brutalidade”, tanto em zonas inundadas pelas alterações climáticas, como nas áreas onde se morre de fome, ou nos barcos onde se morre a tentar chegar a uma vida menos má, só para citar alguns exemplos.

Por fim, decidem, a determinada altura do Manifesto, enumerar as lutas com as quais deve haver ligação, os combates onde os anti-capitalistas devem estar presentes. Ora, quando se vai por esse caminho, ou se consegue fazer uma listagem exaustiva, ou pode sempre haver lugar a críticas por faltar alguma coisa que cada leitor considerar importante. É esse o caso do Manifesto. Refere, com acerto, a questão dos imigrantes, do género, a frente ideológica e cultural. Mas não diz nada sobre a participação nas lutas pelo fim da discriminação da orientação sexual, não toca na ecologia, não fala, e isso dói-nos especialmente, na importância da presença revolucionária nas experiências de re-apropriação de espaços, públicos ou privados.

Pirate Bay contra-ataca

Nos últimos meses tem havido inúmeras notícias de associações ligadas à indústria do entretenimento a interpor processos contra sites de partilha de ficheiros. Muitos deles têm como alvo o maior site de torrents do mundo, o sueco Pirate Bay (thepiratebay.org). Esta história é um pouco diferente: desta vez é o Pirate Bay que anunciou que vai processar “a indústria da música e do cinema”.


O Pirate Bay é um agregador de
torrents (pequenos ficheiros que servem de “mapas” aos utilizadores p2p) e foi processado por inúmeras entidades que acusam os “piratas” de violação de direitos de autor. Até agora, as iniciativas legais têm falhado, porque, à luz do quadro jurídico sueco, a actividade do Pirate Bay é legal.
No mês passado, a Associação Fonográfica Portuguesa, a Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas, Intérpretes ou Executantes e a Federação dos Editores de Vídeo enviaram uma carta à polícia sueca apelando a que voltasse a agir contra o site.

Agora, o Pirate Bay contra-ataca. Num artigo colocado no seu blog, o site ameaça processos contra uma série de conglomerados de média, acusando-os de “pagar a hackers profissionais e sabotadores”: “Temos provas do que suspeitávamos há muito tempo (...) relatamos estes incidentes à polícia”. A acusação é que estes “hackers profissionais” cometeram actos de “sabotagem infraestrutural, spamming e ataques de negação de serviço”.
O Pirate Bay diz ter denunciado as filiais na Suécia de uma série de grandes empresas, entre as quais os estúdios cinematográficos Twentieth Century Fox e Paramount, as editoras musicais EMI e Sony BMG, e as editoras de jogos Ubisoft e Atari.


Ainda sobre o Pirate Bay, eis o resumo de uma outra acção igualmente séria mas mais hilariante do colectivo sueco. A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, na sua sigla inglesa), entidade que representa os interesses das quatro grandes editoras discográficas por todo o globo, esqueceu-se de renovar o registo do nome do domínio ifpi.com. Em resultado deste desleixo, perdeu-o para um blogger anónimo que, por sua vez, decidiu doá-lo a Brokep, o administrador do tracker de Bit Torrent.


Agora, quem digitar ifpi.com na barra de endereços do seu navegador da Web irá dar de caras com o site de uma IFPI completamente diferente, a Federação Internacional dos Interesses Piratas (Internacional Federation of Pirates Interests – IFPI, em inglês), que consiste numa nova federação internacional criada de modo a promover a pirataria na internet, no sentido de responder aos constantes ataques lançados pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica contra o Pirate Bay.

Festa de Herodes

pela Vintena Vadia

Às 23h11, fez-se silêncio e apagaram-se as luzes. As palmas demoraram a arrancar mas multiplicaram-se enérgicas. Era a última representação de Salomé, de Oscar Wilde, na CasaViva, pela primeira vez palco de teatro assumido. Pelos amadores da Vintena Vadia, numa encenação de Elisabeth Schuster. Oito noites em cena, entre 12 e 21 de Outubro. O espectáculo, de acesso gratuito, foi apreciado por perto de 250 pessoas. Outras não puderam assistir, porque a lotação era limitada a pouco mais de 30 espectadores por representação.

Herodes, rei da província da Judeia, oferece uma festa à sua corte feminina e, perante o olhar de todos, assedia continuamente a sua enteada Salomé. Esta vinga-se dele e do seu mundo decadente, tomando-lhe o brinquedo preferido: a profetisa judia Iokanaan, que aquele mantém prisioneira. Salomé dança para o libidinoso rei e, em contrapartida, obriga-o, publicamente, a oferecer-lhe tudo o que ela quiser. Salomé vê assim a cabeça de Iokanaan ser-lhe servida numa bandeja de prata. Mas esta humilhação de Herodes tornar-se-á a fatalidade de Salomé.
Esta a história em sete actos. Um actor e 11 actrizes em cena percorrem a casa durante hora e meia, o público atrás, conduzido por guardas de Herodes. Do jardim, escadaria acima até ao varandim sob a clarabóia, passando pela penumbra do corredor do rés-do-chão, transformado em prisão, e pela bem iluminada sala grande, palco do manjar. Os espectadores são convidados da festa simulada pela cenografia, adereços e figurinos, pela música. E, claro, pela interpretação dos actores, pela energia que transmitem numa história dramaticamente empolgante.

“O espectáculo cresceu muito”, comentava, no final da última representação, um actor profissional, que também assistiu à estreia. Foi uma grande produção, envolveu uma equipa de 19 pessoas. Uma “fantástica produção com gente amorosa, que trabalhou sem dinheiro, apenas por idealismo e com muita coragem”, como haveria de dizer Lisa, a encenadora, oriunda da Alemanha. “Quando vi o interior da CasaViva, apaixonei-me imediatamente pela ideia de usar a casa como palco para a peça”, comentara em Maio, antes de começarem os ensaios. Apesar dos seus jovens 24 anos, Salomé foi a sétima encenação de Lisa.
Há anos que Lisa queria encenar Salomé. A peça veio-lhe de imediato à ideia quando conheceu o grupo de teatro Vintena Vadia, com tantas actrizes. À excepção de Herodes, todas as outras personagens se transformaram em mulheres, “to creat a one man-leaded female, violent and decadent world”. Cortou algumas personagens e pequenas cenas e seguiu o texto original.
Foi a primeira encenação de Elisabeth Schuster com a Vintena Vadia. “Aprendemos muito com a Lisa, ela foi uma grande ajuda para o grupo a nível de aprendizagem, profissionalismo, disciplina”, dizem os actores. O grupo, formado por finalistas de um curso livre de teatro na ESMAE, foi oficialmente constituído como associação cultural sem fins lucrativos há dois anos. Até agora, só haviam representado textos portugueses, encenados por Nuno Meireles, convidado mas que entretanto se afastou por compromissos profissionais.

Salomé absorveu o grupo durante mais de três meses. Convidaram técnicos e o espectáculo aconteceu. Acabou, ao fim de oito representações. Ficou a vontade de repetir, na CasaViva ou numa casa parecida. E há tantas no Porto que não se arrendam nem se vendem e que podiam estar vivas, a exemplo do nº 167 da praça do marquês de pombal, há ano e meio cedida à colectividade pelos proprietários, enquanto aguarda comprador. Cedida para um projecto plural, interventivo e gratuito, que a reanima e reabilita.


ficha técnica
Salomé
, de Oscar Wilde
Pela Vintena Vadia – Grupo de Teatro
Encenação: Elisabeth Schuster
Interpretação: Aljusto, Andreia Mota, Ana Campos, Avelina Vieira, Carla Guedes, Cristina Freitas, Isadora Fevereiro, Luísa Barbosa, Maria José Gonçalves, Paula Dias, Rita Figueiredo, Virgínia Silva
Cenografia: Jonas Ribeiro e Fernanda Macedo
Desenho de luz: Augusto Ramalhão
Figurinos: Alice Assal
Compositor: Pedro Junqueira Maia
Músico: Carlos Lima-Sitar

Convite

Para contrariarmos a esperteza da raposa no galinheiro e não ficarmos cada um a seu canto a esgravatar terra

Às vezes acorda-se sorridente, bem disposto, radioso. Noutras manhãs, tudo é cinzento, triste, irritante. A malta da CasaViva também experimenta estes dois acordares e toda a variedade de outros amanheceres que estão entre um extremo e o outro. Mas incomodamo-nos sempre. Todos os dias.

Sempre que paramos este permanente bulir que nos ensinaram que é o verdadeiro viver. Nesses momentos, ficamos frequentemente cabreados. Existiriam, decerto, formas mais eruditas de colocar a questão, mas o que está dito dito está e pareceu-nos mais simples fazer este acrescento do que procurar um sinónimo para uma palavra cuja abrangência de conteúdo só é permitida por ter a sua origem na sabedoria popular.

Chateia-nos viver num planeta com tanto para partilhar e que apenas é explorado em proveito da espécie dominante, tornando a usurpação e o abuso nos conceitos por onde se começa a definição de ser humano.

Aborrece-nos que nos tomem por parvos quando nos tiram direitos e nos dizem que é para nosso bem, como se os direitos que nos tiram se evaporassem e não fossem, como dizia Lavoisier, apenas transformados em direitos de outros.

Apoquenta-nos que nos controlem, nos vigiem, nos fichem, nos transformem em conteúdos de bases de dados, nos gravem, nos chantageiem, nos cortem o direito a contestar, nos façam a todos bufos e polícias.

Indigna-nos que tudo seja mercadoria. Negociável, transaccionável, passível de ser transformado em lucro.

Não pode ser.

O capitalismo, já todos o sabemos, é apenas esta liberdade da raposa no galinheiro. Também não é segredo que a força do predador aumenta na proporção directa da desunião entre as presas. No entanto, mesmo possuindo o diagnóstico, nunca tratamos da maleita. E a responsabilidade de tentar a aproximação entre todos os que acreditam numa mudança organizacional radical é nossa, dos suficientemente vivos para darem umas bicadas na besta, de forma a que, de dispersas e curáveis, se tornem mais eficazes, provoquem gangrenas e acelerem a morte do carcereiro. De outro modo, continuaremos cada um no seu canto, a esgravatar terra como quem se deixa paralisar pelo medo, e a sair esporadicamente, aplicar uma bicada e recolher.

Já houve várias tentativas de união de esforços. Redundaram quase sempre em grandes exercícios de retórica sobre a maior validade da minha forma de luta em relação à tua. Na melhor das hipóteses, acabaram numa lista electrónica de discussão também electrónica que se foi silenciando com o tempo.

Mas a desistência não pode fazer parte do vocabulário de nenhum de nós. Se a coisa não tem funcionado, talvez seja hora de procurar métodos diferentes para a fazer progredir. E, a nós, parece-nos que não é na conversa formal que a união verdadeira cresce. É nas acções que nos sentimos mais próximos. É em ambientes mais descontraídos que nos sentimos mais preparados para falar uns com os outros. É na rua e na festa que se criam laços e se constroem afinidades, onde se forjam verdadeiras redes de interesses e participação.

Queremos, portanto, convidar-vos para que apareçam na sexta-feira, dia 14 de Dezembro, e que só saiam daqui na segunda, dia 17. Para esses dias, pensamos num programa de festas (1) que inclui apresentação dos colectivos presentes (1), acções de rua (2), discussões (3) e concertos.


(1) Para não ser maçador, achamos que o melhor que há a fazer é cada colectivo apresentar-se, caso o queira, em formato imagem. Se assim for, é importante que nos façam chegar essa apresentação pelo menos uma semana antes do evento (até 9 de Dezembro). A ideia é, depois, discutirmos ao sabor do que a visualização das imagens nos fizer passar pela cabeça.

(2) A ideia são acções que impliquem pouca gente e pouca preparação no momento. Dessa forma, será possível apresentá-las ao pequeno-almoço e sair para a rua para as colocar em prática uma hora depois. Nós teremos meia dúzia de acções pensadas. Mas o ideal seria aparecerem mais, desde que tenham condições para se realizarem. Queremos dizer que não vale a pena, por exemplo, propor uma marcha com pancartas em punho se não se tiverem já as pancartas feitas. Cada pessoa ou colectivo apresentará uma ideia e dirá quantas pessoas são necessárias. Depois, cada um se juntará ao grupo que quiser, se houver gente e ideias suficientes. Se não houver, o mesmo grupo poderá tratar de mais do que uma acção.

(3) Era importante que toda a gente pudesse ficar até domingo à noite, porque a assembleia final, onde se poderão discutir formas de nos tornarmos mais presentes nas coisas que cada um dos outros organiza, e a marcação de uma próxima jornada de acções são coisas que precisam de toda a gente.

Nota final – Nestes dias era importante que a CasaViva fosse autogerida por todos os participantes. Portanto, que ninguém estranhe que se retire uns minutos de cada dia para organizar as várias coisas de que a Casa precise (quem cozinhe, quem limpe, quem lave, quem ...)

sábado, 4 de agosto de 2007







Índice

O G8 come tudo, tudo, tudo. A UE come tudo o que puder. A polícia acha que ainda bate pouco. A verdade é que o mundo está a morrer...
Os media mentem, o G8 decide, a UE executa e a polícia apimenta tudo a toque de bastão.

Manifs sim, se cheirosas e bem vestidas
Como o "dia da liberdade" se transforma, perante o olhar aprovador geral, numa jornada de repressão policial. Aconteceu em Lisboa, essa mesmo, a de Portugal, no 25 de Abril.

A mentira como técnica de governação
A realidade não é o que se vê na televisão e os jornais mentem. Não sabemos o que está acontecer agora no Iraque.

A informação é mercadoria?
Não, diz o Pica-miolos. Porque não tem ligações ao poder nem ambiciona ter. As pressões que tem são do cérebro de quem escreve.

Basta de cerejas, que é feito do bolo?
Conversa vadia sobre o que é então a cultura e para que serve afinal.

Pelo direito à habitação e ao lugar
A Plataforma Artigo 65 quer transformar a política de habitação.

Foi bonito, pá!
A primeira marcha global pela marijuana no Porto. Densa mancha de gente desceu do Marquês a D.João I, pedindo a legalização da cannabis.

Mais vale que arda a STCP
E a razão de tudo isto, rai’s parta que carago, é que ministros e presidentes não andam de autocarro.

Curtas
Podiam ser as da vila.

Sopa da Letras
Uma sopinha de pedra no sapato dos portuenses.

A Vizinha queixou-se deste barulho.mp3
CD legal, editado sem autorização das bandas mas respeitador da propriedade das Notas Musicais Sugai®.

Suplemento
Meios-termos vale mais não termos. Para termos a sério, sem amputações nem restrições, há que conhecer os termos. Eis o Glossário Pica-miolos, se calhar com menos miolos mas com uma cedilha que desponta.

O G8 come tudo, tudo, tudo. A UE come tudo o que puder. A polícia acha que ainda bate pouco. A verdade é que o mundo está a morrer...


A Europa totalitária revela-se
Nos inícios de Junho, não te deve ter passado despercebido mais uma cena de manifestantes à porrada com a polícia. Porque foi isso que os média transmitiram... mais uma cena de manifestantes à porrada com a polícia. Talvez já não te lembres, até porque não está previsto que te lembres, mas, desta vez, tratava-se de manifestantes anti-G8 e de polícias alemães. Os primeiros são violentos. Os segundos, coitados, cumprem a sua função.
Isto foi-nos dito pelas televisões, pelos jornais, pelas rádios. De forma a ser repetido nas mesas e balcões de café, até ficar enraizado. Os média empresariais não se inibiram, mais uma vez, de mentir, ocultar, deturpar. Não me parece, mas talvez tudo não tenha passado de distracção, preguiça, enfim, mau jornalismo, daquele que não presencia os acontecimentos e interpreta a versão policial como a verdade, sem se dar ao trabalho de tentar sequer saber se, ao menos, existe outra versão.
Os resultados deste tipo de jornalismo fizeram-se sentir mal os primeiros confrontos sérios aconteceram, no dia 2 de Junho. Os membros do Black Bloc, apresentado como uma seita de destruição, tinham-se atirado, como cães, aos agentes da autoridade, que não puderam senão defender-se. Essa foi a estória da polícia. Essa foi, também, a história nos média. Aparentemente, ninguém se apercebeu, ou quis dizer, que há vídeos que demonstram que a legítima defesa funcionou ao contrário e que tiveram que ser os manifestantes a defender-se dos ataques policiais.
Naqueles dias, haveria centenas de jornalistas na zona. Que nos tenha chegado eco em português, nenhum reparou, ou quis dizer, que, durante bem mais do que uma semana, a maior operação alemã de segurança do pós segunda guerra mundial transformou o país, e aquela zona em particular, num local quase hitleriano, onde as rusgas por motivos políticos, o aprisionamento temporário de pessoas com vista à recolha dos seus dados e revista e as detenções arbitrárias eram o pão nosso de cada dia. E, acima de tudo, caros amigos, acima de tudo, nenhum jornalista desses que se dizem dos “meios de comunicação social” reparou, ou quis dizer, que nem um único delegado do G8 conseguiu entrar por terra no local da reunião. Todos os acessos terrestres foram bloqueados por milhares de manifestantes que se opõem às ideias que o G8 tem para o mundo. Reparem... nem um único delegado do G8 conseguiu entrar por terra no local da reunião. A organização teve que se desenrascar com meios aéreos e marítimos. Mesmo assim, houve delegados que nunca chegaram a participar na cimeira. Um feito inspirador para uns, um acto ignóbil de sabotagem para outros, mas, para todos, creio, um facto merecedor de nota, nem que fosse de rodapé, uma frase perdida num parágrafo, uma palavra, uma sílaba, uma letra...
Bloqueio, meus caros. Bloqueio, transformação duma estância turística onde não queriam que ninguém entrasse numa prisão de onde não conseguiam sair. E ninguém reparou? Nem os jornalistas que tiveram que entrar por ar ou por água? Será que os tais profissionais dos “meios de comunicação social” viram tudo isto e, eles próprios ou o critério editorial que os enforma, decidiram não nos dizer nada?
Na minha terrinha, olhe-se por onde se olhar, isto só tem um nome: Censura!

Mas afinal o que é o G8?
O G8 é constituído pelos governos dos 7 países mais ricos do mundo – Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão, Reino Unido – mais a Rússia. Os líderes destes governos reúnem-se todos os anos, nas chamadas “Cimeiras do G8” para coordenar as políticas relacionadas com a economia e a segurança internacionais.
O G8 é uma instituição sem legitimidade. No entanto, como auto-proclamado governo mundial informal, toma decisões que afectam toda a humanidade. As suas políticas pretendem uma globalização neo-liberal, desregulação e políticas económicas orientadas para o retorno do capital dos investidores e empresas internacionais.
Estas políticas são apresentadas como a solução para uma variedade enorme de problemas globais, da pobreza à destruição ambiental, mas acabam por ter o efeito de fortalecer um sistema económico internacional no qual os países do G8 têm a maioria do poder e da riqueza, num mundo em que a pobreza extrema mata mais de 18 milhões de pessoas todos os anos. Cinquenta mil por dia. Duas mil e cinquenta e cinco por hora ou, mais simplesmente, trinta e cinco indivíduos por cada minuto que passa.
Ao mesmo tempo, as taxas de produtividade mundiais nunca foram tão altas. Há toneladas de comida a serem destruídas ou deitadas fora todos os dias.
O propósito fundamental do G8 é a promoção da liberalização de todo o tipo de sectores. Como consequência, tem-se assistido a um ritmo brutal de privatizações de serviços públicos como a saúde, a educação, a água ou a electricidade. Não é raro que isto conduza a um acesso mais restrito a este tipo de serviços. A pobreza aumenta, assim, não só nos países já oficialmente pobres mas também no mundo industrializado.
Apesar de não ter poder formal, o G8 detém, através dos seus membros, 50% dos votos no Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial e tem grande influência na Organização Mundial de Comércio (OMC). Quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) são membros do G8, que, assim, pode vetar qualquer resolução. Ou seja, não há grandes hipóteses de se levar a efeito qualquer decisão contrária à vontade do G8, nem que seja tomada pela maioria das pessoas ou dos governos do mundo.

A presidência portuguesa da UE
A presidência portuguesa da União Europeia (UE) zelará para que as políticas definidas pelo G8 sejam aplicadas no espaço comunitário. É tão apenas disso que se trata. Os enormemente poderosos definem as regras e os vários poderes subsequentes tratam de as aplicar na prática, no concreto, no quotidiano. Aos média caberá, ainda e sempre, a função de legitimar essas decisões, transmitir as regras como normas lógicas e coerentes, encostar a um canto escuro ou ludicamente iluminado toda a dissidência.
Portugal dará o seu contributo, independentemente da retórica, para que a Europa Social, que nunca foi uma realidade, desapareça até como ideia. O objectivo é que o conceito de eficiência se confunda com o de rentabilidade e se afaste definitivamente do de justiça ou do de universalidade.
Promoverá uma agenda securitária que anule cada vez mais liberdades civis, contribuindo, de facto, para que a excepção se torne na regra, de forma a que a UE seja um conjunto de países em estado de sítio permanente cuja população ajude a tratar como crime de alta traição qualquer esboço de contestação.
Sócrates brilhará ao dar um empurrão decisivo para a aprovação do tratado constitucional da União, demonstrando, se tal fosse ainda necessário, que o que os cidadãos pensam não tem a mínima relevância quando a agenda tem que ser cumprida.
Os lusitanos aproveitarão o seu enquadramento histórico para facilitarem a entrada da UE no mercado africano, agora que a China, um dos grandes concorrentes mundiais do bloco europeu, se implanta por lá a todo o vapor. Algum dos blocos pensará, por um segundo que seja, nos africanos? Não creio.
O executivo do PS, ajudará a impor condições de trabalho cada vez menos humanizadas, abrindo ainda mais portas para a chegada desse amanhã que canta, onde todos seremos flexíveis a todos os níveis, onde as relações pessoais duradoiras sejam impossíveis, onde as pessoas deixem de ser “quem” e passem a um “aquilo”, meras peças amovíveis da grande máquina de fazer dinheiro.

Manifs sim, se cheirosas e bem vestidas

25 Abril 2007, em Lisboa
No dia em que Cavaco apelou à capacidade de mobilização e de indignação da juventude, algumas pessoas, entre elas muitos jovens, decidiram mobilizar-se e indignar-se contra o ressurgimento do fascismo político e a vitória desse outro fascismo, de cariz mais económico, que condena todas as sociedades a organizarem-se sob os ditames da fase actual do capitalismo, habitualmente conhecida por neo-liberalismo ou economia de mercado.

Para depois das comemorações oficiais do 25 de Abril, em Lisboa, foi convocada, por pessoas cansadas do ritual festivo com que actualmente se assinala cada aniversário da revolução, uma manifestação “anti-autoritária, anti-fascista e anti-capitalista”. O percurso, pautado por palavras de ordem bem mais combativas do que as que se tinham gritado um pouco antes, iniciou-se por volta das 18h30, na Praça da Figueira, e acabou uma hora mais tarde, no Largo de Camões. Apesar de ter sido levada a efeito sem autorização, a marcha decorreu sem incidentes, nem por parte dos manifestantes nem por parte do impressionante aparato policial que a escoltou.

Uma vez no Largo de Camões, uma parte considerável das pessoas sentiu-se feliz por ter sido capaz de exercitar esse direito que é o de manifestação. Tão fundamental ele é, que se torna ridículo que implique uma autorização. Vincando esse ponto de vista e gritando bem alto que o estado actual do mundo é insuportável e que a solução não passa por perspectivas autoritárias ou nacionalistas, essas pessoas voltaram, creio que sorridentes, para casa.

Um número menor de indivíduos achou, no entanto, que faltava fazer algo mais e decidiu dirigir-se à sede do Partido Nacional Renovador (PNR), na Rua da Prata, descendo a Rua Garrett. Nessa altura, a marcha era constituída por um número entre 60 e 100 pessoas, onde se destacava um núcleo de cara tapada. No caminho, que seguiu pela Rua do Carmo, fizeram pichagens e atiraram bolas de tinta a várias montras. Nada havia sido partido. Nenhuma agressão havia sido feita.

A determinada altura, dois ou três manifestantes pararam para escrever numa parede: “O 25 de Abril passou mas a lei do bastão continua”. Um grupo de polícias à paisana cercou os autores do grafiti para os deter, mas foi, ele próprio, cercado por outra malta que tinha ficado por perto para o que desse e viesse. Os agentes largaram os que tinham agarrado, sacaram dos bastões extensíveis e recuaram em grupo. O resto da manifestação, que já tinha passado o elevador de Sta. Justa, apercebendo-se do que se estava a passar, subiu a Rua do Carmo a correr. As carrinhas azuis abriram as portas, tanto na parte de cima como na parte de baixo da rua, os agentes saíram a correr e a bater, no que foram imitados pelos infiltrados à paisana na manifestação. Como a resistência era mínima, a polícia passou ao espancamento dos manifestantes e de toda a gente que se atravessasse no caminho, incluindo alguns turistas. Onze pessoas foram presas, tendo algumas delas sido agredidas depois de detidas.

Este é, em traços gerais, o retrato do que se passou no fim da tarde do dia 25 de Abril de 2007, na baixa de Lisboa. Nesse mesmo dia, bastante mais cedo, a polícia tinha-se apressado a defender um cartaz do PNR de tomates atirados por alguns dos presentes nas comemorações oficiais do 33º aniversário da “revolução dos cravos”.

A crítica à atitude, às acções e aos eventuais objectivos dos manifestantes é legítima, mas rebatível de um ponto de vista ideológico. Já o questionamento da acção policial, se também é legítimo, parece-me muito menos defensável, mesmo se a olharmos pelos olhos da ideologia que a forma, a do Estado de direito democrático. Senão vejamos...

A manifestação não estava autorizada. No entanto, a polícia nunca exigiu, ou pediu sequer, que desmobilizasse. A polícia carregou e não parou nem perante a ausência de resistência. Por outro lado, começou a bater antes de saber da existência de alegados cocktails Molotov. Estes, a existirem, nunca podem, portanto, ser apresentados como justificação para carga policial. A polícia refere montras partidas, agressões a transeuntes e chega mesmo a utilizar a expressão “rasto crescente de destruição. Ou seja, a polícia mente descaradamente. Alega, ainda, a existência de um very light. Os manifestantes corroboram, mas afirmam que veio do lado das “forças da ordem”. Onze indivíduos foram detidos por volta das 20h00. Até 17 horas depois, o único alimento que lhes foi fornecido foi pão e leite pelo pequeno-almoço. Lembremo-nos que a carga começou por causa dum grafiti e, eventualmente, também por causa de bolas coloridas atiradas a algumas montras. A polícia, tanto quanto podia saber naquele momento, enfrentava um exército munido de tinta.

Por muitas razões de queixa que se pudesse ter dos manifestantes, a polícia dum Estado de direito democrático tem que precisar de muito mais para levar a cabo uma carga tão brutal. Claro que esse mesmo Estado diz que não, desde que, depois, haja o respectivo inquérito. De qualquer forma, o governo, pela voz do secretário de Estado José Magalhães, já afirmou que esse exercício vai redundar na absolvição das forças policiais e na adopção da versão oficial da “utilização da força necessária”. Não considerou, por exemplo, que, para valer a explicação da polícia, terá que saber do juiz porque é que decretou a medida de coação mínima a um bando de gente perigosa que trazia consigo armas ilegais. Será também necessário saber o porquê da apreensão de “diverso material anarco-libertário”, quando a sua posse não é proibida.

Tudo isto me leva a pensar que a polícia espancou aquelas pessoas naquele fim de tarde tão especial, não pelo que elas fizeram, mas por serem quem eram. Estava-se na ressaca dos raids às casas de elementos da extrema direita. Talvez a polícia tenha pensado que era melhor atacar também os arqui-inimigos dos fascistas, os anarquistas, e, assim, conseguir uma espécie de anulação de forças em que nenhuma das partes se fica a rir da outra. Ou talvez tenha sido apenas a forma de alguns simpatizantes do PNR que, aparentemente, trabalham nas forças de imposição da ordem se vingarem.

Independentemente do carácter especulativo do parágrafo anterior, o que não se pode negar, parece-me, é que se tratou da velha táctica da imposição do medo que garanta o esmagamento duma contestação que não cabe no sistema. Acontece aos camionistas quando bloqueiam estradas ou pontes, acontece aos populares que se organizam de forma mais ou menos espontânea, acontece aos estudantes que se opõem mais empenhadamente às novas leis sobre o ensino, acontece aos ciganos que se recusam a ser despejados, acontece aos trabalhadores que ultrapassam os sindicatos e acontece aos cidadãos com uma crítica mais profunda da organização social e económica actual que não se mobilizam através dum partido ou duma ONG. Porque a contestação é como as manifestações... é legítima, mas tem que ser autorizada, ordeira, bem educada e, de preferência, cheirosa e bem vestida.

A mentira como técnica de governação

4 anos de ocupação, 4 anos de resistência
“Esta situação é grave e parece ultrapassar-nos: que podemos fazer contra isto? Que podem vocês fazer quanto a isto?” – pergunta o jornalista Danny Schechter no final de "Armas de Desinformação", documentário em que escalpeliza o papel dos grandes media em todas as fases da guerra contra o Iraque, desde a sua preparação até à ocupação militar daquele país, passando pelos projectos agressivos do Pentágono e da Casa Branca, que acabam por condicionar uma opinião pública frágil e desprotegida.

"Armas de Desinformação" encerrou, a 11 de Maio, na CasaViva, o ciclo de cinema semanal “4 anos de ocupação, 4 anos de resistência”, iniciado mês e meio antes, quatro anos depois da invasão do Iraque. A pergunta de Danny Schechter lançou o mote para o debate que se seguiu, orientado por Paulo Esperança, do Tribunal do Iraque (Porto), e pelo jornalista Rui Pereira.
Paulo Esperança abriu a conversa reclamando o julgamento de George W. Bush, Tony Blair, José Maria Aznar e Durão Barroso, que, em reunião na Base das Lajes, decidiram a invasão do Iraque. “É preciso levar os quatro líderes a Tribunal, para responderem perante a opinião pública”, objectivo maior do esforço empreendido para “ressuscitar uma onda de repúdio em relação ao processo que continua a matar milhares e a esconder os mortos”, sendo certo que “isto não é a segunda guerra do Iraque, é a invasão” e que pela “primeira vez o império assume o despudor e a impunidade”. Ou seja, “estamos a assistir ao hegemonismo assistido”.
Daí, o título do debate: "A mentira como técnica de governação. A guerra contra o Iraque, os media e os poderes". Porque a técnica de governação não é mentira, falou-se sobretudo da mentira dos media, simultaneamente marionetas e manipuladores. Porque nos media cruzam-se interesses empresariais e políticos e as respectivas empresas não são diferentes das grandes companhias petrolíferas que visam o lucro e interagir com o poder.

“Não sabemos o que se passa no Iraque, mas tenho todas as razões para acreditar que o que lá se passa não é o que é noticiado”, afirmou Rui Pereira. “Há um esforço propagandístico para vender a guerra do Iraque, nós próprios acabamos por usar a expressão guerra no Iraque”.
A exposição do jornalista teve por base o estudo que realizou sobre a cobertura noticiosa dos jornais portugueses da invasão do Iraque, que apresentou à Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque em Março de 2005, acontecimento que os referidos media ignoraram.
No estudo – assente num universo de 104 notícias publicadas entre Novembro de 2002 e Outubro de 2004 no “Público” e no “Diário de Notícias” –, denuncia uma fortíssima adesão às teses norte-americanas, que “prosseguiu reiteradamente”, mesmo perante fenómenos como Abu Ghraib ou a acumulação de evidências sobre a inexistência de armas de destruição maciça no Iraque. “Em momentos capitais do conflito, sonegou ou restringiu o acesso do público à totalidade do conjunto de informação relevante para que pudesse formar uma opinião qualificada sobre os assuntos em questão.”
“Até Luís Delgado [colunista do “Diário de Notícias”] sabia que não havia armas de destruição maciça no Iraque”, comentou. Em paralelo, o “Público” afirmava em 7 de Outubro de 2004: “Saddam Hussein não tinha armas mas nunca desistiu de as ter”. Este o título da notícia sobre o relatório final ao Congresso dos EUA sobre armas de destruição maciça, no qual Charles Duelfer, conselheiro especial da CIA, inspector de armamento dos EUA para o Iraque, escreveu: “O regime de Saddam Hussein não tinha em 2003 armas biológicas ou químicas e o seu programa nuclear estava em decadência desde o fim da Guerra do Golfo em 1991”.
“Adelino Gomes acusou-me de ter algo contra o ‘Público’ com um estudo destes”, contou Rui Pereira. O comentário podia não ter interesse se não se tratasse do prestigiado jornalista Adelino Gomes, cuja imagem de microfone nas mãos, em Timor-leste, em 1976, ansioso por relatar a verdade sobre a invasão da ilha pelo exército da Indonésia, faz parte da memória colectiva das gerações que viveram o 25 de Abril. E é a memória colectiva que está em causa quando se perturba a informação.
E informação é informação e opinião é opinião. Contudo, Rui Pereira chegou à conclusão de que a “construção do ambiente intelectual dúplice, pró-Estados Unidos, viveu do conluio entre opinião e informação, compondo um discurso tendencioso e totalitário em que cada uma corroborou a outra, reafirmando-se a si mesma”. Objectivo: “criação de um ambiente intelectual onde, por efeito das regras da orquestração e da repetição em regime de saturação, se torna quase impossível sustentar qualquer tese oposta à predominante”.
Em 24 de Março de 2003, José Manuel Fernandes, director do “Público” escrevia no seu editorial: “Quando a guerra é a única solução para evitar males maiores, apenas temos de saudar os que arriscam as suas vidas por todos nós e pela nossa forma de vida. Os que lutam para que as sociedades livres e abertas que conhecemos se estendam também aos países árabes”.
Segundo Rui Pereira, as opiniões veiculadas por José Manuel Fernandes baseavam-se nas mensagens globais emitidas pela Casa Branca, pelo Office of Global Communications, criado em 2002 e capaz de debitar a qualquer hora do dia, sete dias por semana, os seus produtos propagandísticos. “A imprensa portuguesa reproduziu favoravelmente aos Estados Unidos as teses provenientes dos seus oficiais e, mais do que isso, com frequência instituiu-os em juiz da autenticidade informativa num conflito de que eram parte, referindo a ausência ou presença de confirmação sua relativamente a informação terceira.”
E assim “permitiu que a fabricação de opinião se transformasse em indústria de pura manipulação”.

A “fonte oficial” é o coração da manipulação, assegura o jornalista português. Nas notícias que analisou, contou 587 fontes citadas: 66% favoráveis aos EUA, 27% contrárias. A desproporção contribui para a criação da “versão oficial da mentira”, em que se procurou “convergir em torno da razão de Estado”.
Apesar das conclusões, Rui Pereira garante que a maior parte dos jornalistas que conheceu ao longo da sua vida profissional são “gente séria”. Mas, ao “contrário dos outros assalariados, o jornalista sabe que está a intoxicar”. Acontece é que “quem escreve nos jornais, profissionalmente ou na condição de opinion-maker, entra num jogo, numa dramaturgia que, por mais encenada que seja, constitutivamente não permite a nenhum dos seus agentes que infrinja a regra que lhe dá sentido”. Isto é, “o imperativo de, para poder continuar a jogar-se, pressupor a confiança e o crédito do público”.
O jornalismo está na primeira linha de confronto, considera. Ausência de informação não é o problema dos nossos dias, o problema é que alguns, normalmente os mais influentes, só utilizam a informação que querem.
“Estamos num mundo em que as pessoas têm necessidade de estarem informadas, em que foi induzido o mito da informação. Mas até que ponto temos necessidade de ter outra informação? Até que ponto temos necessidade de ter informação diferente?” – questionou, sem encontrar resposta precisa, apontando somente a “necessidade intelectual de pôr em comum as coisas”.
A certeza que tem é que “não se pode combater correntes de pensamento com a realidade, mas com saber e informação”, tanto mais que “só temos a ganhar com uma atitude ética impoluta”. A sua preocupação relativamente ao Iraque é pensar no que “podíamos estar a ver quando vemos determinada notícia”, que outras notícias são preteridas em benefício das oficiais.
”O que era verdade, hoje é mentira”, recordou Paulo Esperança. Razão porque Rui Pereira estranha que, nenhum dos jornalistas e dos opinion makers citados no seu estudo tenha, à data, apresentado “uma explicação credível para não apenas ter começado por se enganar, como tenha continuado enganado, até ao ponto de tornar-se um referencial colectivo do embuste”. E não só “não veicularam com rigor a grotesca dimensão desse ludíbrio, como não apresentaram perante os seus públicos a devida retratação”, ainda que tenham sido condenados (por alinharem pelos argumentos dos agressores) pelo Tribunal Mundial sobre o Iraque, na sequência da audiência portuguesa realizada entre 18 e 20 de Março de 2005, em Lisboa, e três meses depois na sessão final em Istambul, Turquia.
O Tribunal Mundial sobre o Iraque (tribunaliraque.no.sapo.pt/) foi criado em 2003, na tradição do Tribunal Russell para o Vietname, com o apoio de figuras internacionalmente prestigiadas. Trata-se de um tribunal de opinião pública, que emite deliberações de consciência. Algo subjectivo num mundo que fabrica guerras ao sabor dos interesses políticos e económicos.
Ainda que convidados a estarem presentes no debate na CasaViva, nenhum jornal português se fez representar nem deu notícia sobre o assunto. A assistência era constituída por uma dezena de pessoas sensíveis ao assunto mas pouco participativas. Das intervenções, registe-se uma das perguntas, que ficou sem resposta: “Qual a margem da nossa verdade?”.