O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 8 de novembro de 2008

3 anos depois

Jean Charles de Menezes tinha 27 anos. Vivia pacatamente em Londres, electricista de profissão, com residência fixa e situação legalizada enquanto imigrante brasileiro. Foi abatido com 11 balas pela polícia londrina, no dia 22 de Julho de 2005, vítima de um erro que só recentemente começou a ser investigado. Em Setembro último arrancou o inquérito que sucede a dois relatórios da comissão independente de queixas contra a polícia, um dos quais revelou "sérias falhas" na forma como esta lidou com a informação após a morte de Jean Charles, segundo notícias dos jornais. O inquérito prolonga-se por 12 semanas, para questionar 75 testemunhas, incluindo 48 polícias e vários passageiros que assistiram à execução no metro.


3 anos depois chegou-nos o relato de quem se envolveu no processo de condenação do crime, um amigo da CasaViva que à época vivia em Londres:


22 Julho 2008. Esta manhã, recebi um email da Lúcia, prima do Jean Charles de Menezes, um brasileiro fuzilado pela policia no metro em Londres, faz hoje exactamente três anos. Conhecemo-nos por acaso, pouco mais de uma semana depois da morte do primo, através de uma amiga iraniana que prontamente se propôs a ajudar a família a desenvolver uma campanha a pedir justiça. Por falta de opções, pediram-me para preencher o vazio entre a campanha e a família como tradutor, e assim o fiz durante quase um ano, criando uma relação minimamente estreita com as duas primas e dois amigos do Jean que ainda permanecem em Londres.

Confesso que entretanto muito tempo passou e quase me tinha esquecido que no dia 22 de Julho de 2005 morreu um jovem que nada tinha a ver com um conflito global de interesses muito duvidosos. Ela pediu que hoje, no mínimo, se relembrasse aquele dia, por isso vos escrevo hoje sobre isto.

Faz hoje, então, três anos desde que a policia inglesa disparou 11 balas em direcção a um electricista brasileiro, no metro de Londres, na estação de Stockwell (ironicamente no bairro português). Cinco bombas tinham explodido na cidade exactamente duas semanas antes, matando 72 pessoas e ferindo muitas outras, em quatro estações de metro e num autocarro. (Felizmente estava na Escócia, nesse dia.) Durante essas duas semanas, viajar no metro em Londres foi sempre uma aventura desconfortável, cheia de olhares indiscretos e cautelosos. Ao menor movimento brusco sentia-se um arrepio pela espinha apenas disfarçado pelo calor fora de vulgar que se fazia sentir nessa altura.

A polícia, sedenta de encontrar culpados, montou uma série de operações de vigilância em frente de habitações de suspeitos. Jean Charles habitava num desses blocos de apartamentos, onde se vigiava um tal de Hussain Osman, que em nada se assemelhava a Jean. Era hora do almoço e apenas restava um guarda na vigília. Não aguentando mais a vontade de se aliviar, deixou o posto para ir mijar atrás de uma árvore. Nisto saiu Jean de casa para ir trabalhar. Na confusão, o guarda não conseguiu identificar o indivíduo, comunicando-o imediatamente à sua central.

Jean apanhou um autocarro de Tulse Hill até Brixton sempre seguido por dois agentes à paisana. Chegado a Brixton repara que a estação de metro está fechada (dois supostos bombistas tinham apenas uma hora antes falhado um ataque suicida). Apanhou outro autocarro até Stockwell e calmamente entrou na estação. Pegou num jornal gratuito, desceu as escadas rolantes, entrou num metro que estava parado e sentou-se a ler o jornal.

Nisto entraram na plataforma da estação seis homens armados, aos gritos e a correrem na sua direcção. Jean levantou-se, obviamente assustado. Sem que tivesse tempo para reagir foi fuzilado com 11 balas, a maioria na cabeça e pescoço.Passou-se cerca de uma hora e nos media falava-se que se tinha impedido outro terrorista suicida. Por esta altura a policia já tinha reparado no erro que cometera e começara prontamente a destruir as provas do seu crime.

Primeiro distribuiu uma série de mentiras, de maneira a preparar a justificação do erro, apenas admitido dois dias depois. Disseram que Jean saltou as barreiras dos bilhetes. Falso, as imagens das câmaras de segurança mostram claramente Jean a entrar calmamente depois de inserir o passe na máquina. Depois disseram que Jean tinha vestido um casaco largo e comprido, de forma a esconder explosivos. Falso, era Verão, estava enublado mas calor, e Jean tinha vestido um fino casaco de ganga. Depois, disseram que era um imigrante ilegal. Falso, Jean era um dos poucos brasileiros na Europa com situação legalizada. Etc., etc., as mentiras continuaram durante horas e por toda a Inglaterra ouvia-se nada mais do que louvores ao excelente trabalho da polícia.

Quando não mais dava para esconder o erro, os seis polícias foram enviados para as Caraíbas de férias, com um bem gordinho subsídio, de forma a não serem molestados pelos media. O inspector da Scotland Yard emitiu um pedido de desculpas e... o caso foi encerrado.

Encerrado até cerca de nove meses depois, quando a família, após uma série de concertos de música punk e festas de samba para angariação de fundos, finalmente juntou dinheiro suficiente para processar as autoridades. (Jean era de origens modestas, os pais agricultores sem terra no Sertão brasileiro, e as primas empregadas domésticas em Londres). Apareceu em cena Gareth Peirce, uma advogada famosa pelo caso dos Guilford 4 (quatro irlandeses falsamente acusados de um ataque do IRA nos anos 70). Foi então instaurado um inquérito "independente", onde se reconheceram erros inaceitáveis, mas que, no entanto, não justificaram qualquer penalização.

Pelo contrário, os seis polícias continuam de arma na mão, a inspectora responsável pela operação foi entretanto promovida e o director da Scotland Yard continua a ser o mesmo que naquele dia.

A lista de incongruências do caso é interminável, e todas as indicações levam-nos a pensar que alguém muito tem trabalhado para esconder a verdade. Só para dar um exemplo: as câmaras de vigilância na plataforma estavam supostamente desligadas... difícil de acreditar já que tudo se passou duas semanas depois de um dos maiores ataques terroristas de sempre em Inglaterra.


O relato termina anunciando que nesse dia, três anos depois da morte de Jean Charles, seriam largados 1093 balões e erigida uma estátua constituída por 1093 flores. 1093 correspondia ao número de dias que a família Menezes não conhecia justiça.


Mais info: justice4jean.com

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