Colhões de gato
Uma bela noite, um meu "amigo" muito interessado em ir para a cama comigo fez um escândalo quando eu lhe respondi que não podia nem pensar nisso porque estava completamente "virada" para outra pessoa, mas que também não estava minimamente interessada em ir para a cama com essa pessoa. "Não vales os colhões dum gato", disse. Não sei bem o que é que ele pretendia afirmar com aquilo. Considerando o triste destino da maioria dos colhões dos gatos domésticos, e a desvalorização dos animais em geral, acho que pretendia desvalorizar-me, tipo "não vales nada", mas eu preferi entender que não tenho as valências dos colhões dum gato, passeante orgulhoso e livre pelos telhados nocturnos onde vai a toda e qualquer bichana só porque lhe sai assim essa vontade dos ditos cujos. E olhem a minha cara de preocupada.
É muito importante fazer a diferença entre valor, valores e valências. Quando dizemos "aquela pessoa tem muito valor", estamos a dar à palavra "valor" um uso inadequado e a prolongar a vida a um conceito perigoso, porque vem de longe o nefasto resultado da atribuição de mais direitos às pessoas com "mais valor".
O valor duma pessoa é intrínseco à sua condição de ser (humano) com direitos básicos inalienáveis, não é comparável entre seres nem com coisa nenhuma, e já caminhamos tempo suficiente na senda da moral e da ética para lhe reconhecermos esses direitos, que têm estado consignados nas cartas constitucionais de todos os países ditos democráticos e de direito, embora nos falte outro tanto para reconhecermos os direitos básicos das outras espécies sencientes, outra praia, porque entram em linha de conta outras necessidades básicas.
O "valor" de uma pessoa não se traduz pelas suas valências e pela mais-valia que pode trazer à sociedade (ou ao pequeno núcleo de gente "ilustre" que detém a propriedade da terra, dos meios de produção, de informação e de decisão).
Se assim fosse, faria sentido afirmar que uma pessoa cega ou portadora de um síndroma incapacitante, a chamada "deficiente", vale menos que uma pessoa considerada numa determinada cultura "normal" e essa menos que uma pessoa genial ou super-dotada com valências apreciadas numa determinada cultura. É esse o princípio que está por detrás dos campos de extermínio nazis, dos genocídios étnicos e coloniais, das leis de apartheid, das leis de repressão dos direitos das mulheres, do machismo, de toda a opressão de toda e qualquer "minoria", de toda a concessão de qualquer privilégio social.
Esse princípio, que atribui os direitos - que deveriam ser essenciais - de cada ser em proporção com o seu "valor" (valência para as necessidades ou conceitos daquela cultura), funciona sempre com as premissas ditadas pelos conceitos, valores, interesses e consciência da minoria dominante. No nosso caso, seres humanos homens, brancos, agressivos, territoriais, gananciosos de poder, racionalistas, de pouca consciência e nenhuma ética.
Ufanos e pimpões, homens de "grande valor" passeiam-se em limousines pagas com os nossos impostos, rapinam a seu bel-prazer o erário público, lavam dinheiros, traficam armas e influências, inventam atentados, provocam guerras, atacam populações indefesas, concessionam entre si propriedades públicas, descuram prover a população com o essencial para que deveriam servir esses impostos e ainda se deslocam de jacto e helicóptero para cimeiras onde decidem como explorar-nos e roubar-nos mais eficazmente, defendidos dos nossos protestos por milhares de polícias que nos espancam por protestarmos contra eles; que, pelas leis do código penal e da ética, deveriam ser presos imediatamente (não que eu concorde com o tipo de sistema penal que temos, mas isso é outro assunto).
E a multidão silenciosa, que faz ela? Desvaloriza-se, infantiliza-se, olha os pimpões de baixo para cima, reconhece-lhes grande valor, deixa-se permanecer numa espécie de síndroma de Estocolmo misturado com a passividade aprendida de forma hereditária e agravada com a brutalização de horas de trabalho e de desinformação alienada a mais e é incapaz de olhar para si e para os outros e dizer "bora organizar nós as coisas que estes sacanas já roubaram que chegasse".
Se calhar não vale os colhões dum gato :)
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