O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 8 de novembro de 2008

Os negócios imobiliários de Rui Rio

Empunhando cartazes dizendo-se “cansados de ser discriminados” e gritando “Rui Rio cabrão, só vês o cifrão”, cerca de 50 moradores do Bairro do Aleixo manifestaram-se em frente à Câmara Municipal do Porto (CMP), no passado dia 22 de Julho. Era terça-feira e, no interior do edifício, o executivo camarário aprovava, com os votos favoráveis da coligação PSD/CDS e também do PS, o projecto para a demolição do bairro. No exterior, outros cartazes acusavam: “Rio exterminador social”. No mesmo espaço, cerca de duas dezenas de agentes policiais, quase um para cada duas pessoas. Rio, o mesmo que, em campanha eleitoral para o primeiro mandato, contestou a demolição, tem medo dos pobres, pelo menos quando é apanhado a mentir-lhes.

No final, decidiram avançar com uma providência cautelar, que pretende suspender o processo até que haja uma reunião do executivo com os moradores, para se tentar encontrar uma solução de consenso. Há, como veremos, ideias e projectos alternativos. O que não há, porque se trata do unilateral Rui Rio, é a vontade de consultar as pessoas que serão afectadas pelas resoluções da CMP.


No Bairro do Aleixo, vivem cerca de 1300 pessoas. A população destas comunidades é socialmente desfavorecida, coexistindo inúmeros factores sociais de risco. Os níveis de escolaridade muito baixos, aliados à fraca qualificação profissional, ao que se junta os números de desempregados e as famílias numerosas que convivem em espaços exíguos, para além do abandono estrutural por parte do senhorio, criam um verdadeiro armazém explosivo de renegados desta sociedade. Neste bairro, o carácter de rua como praça desaparece como elemento estruturador e gerador do espaço urbano no sentido tradicional. Os espaços abertos são em geral incaracterísticos, desconfortáveis e principalmente dados à posterior marginalização.

Tudo o que possa implicar a manutenção daquelas pessoas naquele local, entre a Rua do Campo Alegre e a marginal do Douro, com vista de postal e rodeado de condomínios de luxo, não interessa a Rio. O que ele pretende é deslocalizá-las, retirá--las das suas casas e enviá-las para outras zonas da cidade que ainda não se sabem quais são. O edil, se já se demonstrara avesso à ideia de direito à habitação, revela-se agora completamente alheio ao direito ao lugar. Os pobres não têm direito a boas vistas. Ponto final.

Se bem que a humanidade ainda não tenha percebido que não se pode organizar em ricos e pobres, as cidades há muito já deveriam ter entendido que não se devem dividir em zonas de empacotamento de indesejáveis e áreas de usufruto de privilegiados. No entanto, o Porto, com este Rio ao leme, vê, na demolição do Aleixo e nas palavras do geógrafo Rio Fernandes, uma “oportunidade de juntar pobres a pobres e ricos a ricos, promovendo uma assimetria social, uma dualidade, que pode resultar, como já aconteceu noutros países (Brasil), num aumento de violência”. Veja-se ainda o exemplo de Bruxelas, uma cidade dividida a meio onde a norte do centro só habitam imigrantes e classes sociais desfavorecidas e a sul só habitam classes sociais ricas, membros da comissão europeia, etc. A sul tem espaços públicos de luxo, grandes avenidas, grandes parques. A norte nem a recolha diária de lixo fazem! Ou seja, ao mesmo tempo que apregoa uma mudança no paradigma de habitação social, Rio circula na mesma lógica.

As 1300 pessoas que vivem nas cinco torres vêem o seu futuro ameaçado com o novo projecto da autarquia. A preparação para a mudança começou através de uma carta enviada pelo «senhorio» das habitações, a empresa DomusSocial, E.M.. A carta dava conta aos moradores do bairro da situação precária em que vivem e da necessidade de mudança, afirmando sempre que o diálogo será uma constante. «Iremos dialogar com todos os moradores ao longo de todo esse tempo», diz o comunicado, anunciando uma decisão sem consulta prévia.

De acordo com o plano vertido, a autarquia, através de concurso público, escolherá um parceiro privado para a criação de um Fundo Especial de Investimento Imobiliário (FEII), que ficará com o espaço do bairro social, avaliado em cerca de 13 milhões de euros, onde construirá habitação de luxo. Como contrapartida, a entidade privada irá construir de raiz ou reabilitar habitação devoluta e degradada na Baixa do Porto, na zona histórica e noutros pontos da cidade.


Esta será a pedra basilar da propaganda autárquica nesta questão. A demolição do Aleixo será, daqui a uns tempos, igual a reabilitação da baixa. Com o tempo, veremos que os “outros pontos da cidade” ganharão à zona histórica e à Baixa do Porto. Para já, reconheço, trata-se apenas de especulação minha. Como o será o facto de acreditar que uma percentagem muito razoável das pessoas não serão realojadas, no espírito do que aconteceu no Bairro S. João de Deus, onde o pre­sidente da CMP, de decreto salazarista na mão, bradou que se tratava de gente que utilizava a casa para fins ilícitos, nomeadamente o tráfico de droga. Uma justificação decente, podemos ser tentados a pensar, se não tivermos em conta que não decorre duma decisão judicial, antes dum convencimento do edil.

Lembremo-nos do S. João de Deus, vulgo Tarrafal, por se tratar duma situação similar. Talvez por se situar no extremo oriental da cidade e de, como tal, os seus terrenos não serem tão apetecíveis para a especulação imobiliária, o processo de demolição deste bairro ainda não acabou. Neste momento há blocos habitacionais fantasma onde, convenhamos, as ilicitudes ganham novas asas. As pessoas que ainda lá vivem estão mais esquecidas que nunca. Isso não se passará com o Aleixo, que a empresa que fizer parceria com a Câmara não vai deixar de querer rentabilizar esta oportunidade o mais rapidamente possível. O que, por outro lado, se repetirá é a partida dos problemas que lá existem para outros lados, não o seu desaparecimento. Perguntem no Bairro do Cerco, no Machado Vaz, no S. Roque da Lameira ou no Lagarteiro se as coisas estão melhores agora ou antes da demolição do Tarrafal. Para a existência de situações problemáticas, Rui Rio apareceu com a panaceia da demolição. Os factos comprovam que está errado.

E há, como já se disse, projectos e ideias alternativas. Por exemplo, um projecto criado pela arquitecta Ana Lima, que, baseado num modelo francês de recuperação de bairros sociais, consegue tornar a reabilitação mais barata do que a demolição e mais proveitosa também em termos sociais, porque a solução não implica o realojamento da população. Mais espaço, luz e uma melhor disposição interna são apenas alguns dos pontos abordados por Ana Lima no seu projecto de licenciatura, que lhe valeu uma menção honrosa na sexta Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanística. As paredes degradadas, que tendem a deixar cair pedaços sobre quem passa na rua, seriam substituídas por fachadas modernas; a criação de amplos halls de entrada, a duplicação dos elevadores e profundas alterações na cave, que passaria a dispor de lojas com acesso ao exterior, mudariam a cara do Aleixo e permitiriam demonstrar uma real preocupação com o espaço e a comodidade dos habitantes. Deparou-se com falta de informação e pouca colaboração, por parte da câmara, na altura em que realizava o projecto.

Há, claro, quem diga que o problema se coloca, desde logo, na escala, na falta de desenho urbano. E que a solução passa pela demolição das torres e posterior reconstrução, no mesmo local, de outro tipo de habitação social, aproveitando os cerca de 36 mil metros quadrados (dos quais apenas seis mil estão ocupados com habitação) e construir um novo bairro, para quem quisesse lá ficar, com uma estrutura diferente, que se adaptasse à quantidade de famílias que permanecessem na zona.Mas não. Rio já decidiu, está decidido. As torres vão abaixo e, mais retórica menos retórica, um espaço que é municipal, público, da comunidade, vai parar às mãos de privados.

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