O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 8 de novembro de 2008

O karma que (des)culpa tudo ou se sair para ser violada não beba

Há uns dias pôde ler-se a notícia de que uma jovem brasileira foi assassinada na Galiza a golpes de tijolo na cabeça pelo seu companheiro, em frente aos dois filhos do casal, de três e quatro anos, que deram o alarme. E também a notícia de que as mulheres inglesas recebem menos indemnização caso tenham bebido antes de serem violadas.


Leio estas coisas e o mundo cai um pouco mais pela ribanceira abaixo. E passo ao trabalho de o içar de novo. Que isto é um vale de lágrimas cheio de minotauros escondidos nas esquinas, qualquer mulher sabe e eu também. Mas que tudo está na nossa mente é coisa que há muito descobri e que tenho responsabilidade acrescida de gerir como deve ser.


Por algum motivo, talvez por terem crescido e permanecido em circunstâncias que lhes permitem pensamentos que emitem uma vibração positiva que rechaça e antipatiza as negativas, algumas mulheres parecem ter o dom de ler escrito na testa dos homens "agressivo e violento" e assim fogem deles como o diabo da cruz muito antes das coisas entre ambos terem dado azo a que ele se ponha com coisas. Enquanto outras, que parecem incapazes de ler isso, parecem mesmo atrair e serem irremediavelmente atraídas pelo padrão.


Há muita gente que acha que isso é tudo Karma e, portanto, só se perdem as que caem no chão. É que lá se perdem mais umas lições para a alma. Eu prefiro achar que é tudo Dharma e portanto que devemos lutar todos pela felicidade de todos os seres. Apesar de reconhecer que esta divindade que compomos todos parece apreciar uma manifestação na matéria mais estilo bife em sangue e molho de piri-piri...


Conheço ruas inteiras onde porta sim, porta sim, as mulheres são, com frequência, espancadas pelos seus homens, e algumas com quem falei contaram-me que tinham sido espancadas por todos em todas as relações anteriores... Numa altura em que tinha contacto com uma associação local sugeri que nos juntássemos e, em grupo, tentássemos analisar as razões que levam as mulheres a aceitar como normal que os homens lhes batam, ou que, não aceitando, a que permaneçam nesse inferno e o que fazer para sair desse círculo vicioso. Recusaram porque isso iria avivar de forma perigosa as tricas e enredos já muito complicados entre mulheres e se os homens soubessem que andavam a contar umas às outras o que se passa dentro de portas isso ia dar motivo para muito mais pancada.


Abordando essas mulheres uma a uma, no café, nas associações de bairro, ouvi estórias de faca e alguidar, com voos contra paredes, defenestrações, quedas do segundo andar, pernas, braços e dentes partidos, tímpanos rebentados e o mais de que o demo se pudesse lembrar. Vi exibidas cicatrizes horríveis, os dentes em falta... vi os autores das façanhas, impávidos e serenos, e ainda ouvi explicações alarmantes das estratégias utilizadas para diminuir a frequência e grau das tareias. Alarmantes porque em algumas dessas explicações perpassava a convicção de que eles até tinham razão. "Eu dantes portava-me mal, ia para o café conversar com as amigas em vez de ficar em casa a fazer o serviço da casa e ele quando voltava se lhe diziam que me tinham visto no café, claro, castigava-me. Mas depois deixei de ir e agora já raramente me bate".


Do que presenciei, parece haver dois tipos de agressores (estamos a falar de homens, que perfazem de 80 a 90 por cento dos agressores): os agressores "por direito e convicção", aqueles que cresceram ensinados nas famílias por pai e mãe de que bater na mulher é um direito e até um dever e que portanto impõem a sua vontade à pancada.


Não nos enganemos a pensar que só os árabes é que têm uma cultura de "bater na mulher". E por isso a estes correspondem outras tantas mulheres, oriundas de outras tantas famílias onde aprenderam exactamente o mesmo e que são mais predispostas à evolução da mentalidade nessa área, por motivos óbvios, mas trazem em si o padrão que "admite" e "consente" esta realidade. Com estes, deixar de ir ao café, obedecer e fazer-lhes as vontades todas como manda o Sr. prior, até funciona... A pancada torna-se outra.


E os agressores patológicos, os que batem quando o Porto perde, quando o patrão lhes dá uma bronca, quando a vida os frustra de alguma maneira e para quem as mulheres (e os filhos, os cães, os gatos, tudo o que mexer e for mais fraco) são sacos de pancada. Desses fazem parte também os ciumentos compulsivos, os que batem porque a mulher se atrasou cinco minutos, porque a saia está curta, porque um homem olhou para ela, porque simplesmente tiveram um devaneio mais alucinado. É claro que a fronteira entre um e outro é ténue e permeável...


Uma coisa é preciso ver: se uma mulher das que não vê a violência doméstica como uma coisa normal e aceitável, numa altura da sua vida está em baixo, se vê a si e ao mundo de forma negativa e embarca numa relação com um potencial agressor, que não reconhece e só passa a experiência enquanto agressor quando casa ou engravida ou de alguma forma se torna dependente deste, poderia dizer-se que quando a má altura passasse ela poderia sair.


Mas infelizmente este é um círculo vicioso. Porque na grande maioria, se já estavam mal, pior vão ficar. Vão descer uma escadaria que as leva a lugares cada vez mais escuros da sua alma, onde se vão sentir cada vez menos dignas, válidas e merecedoras de respeito, amor, paz e felicidade. E quando, normalmente no momento em que vêem ameaçada a integridade física ou psíquica dos filhos, as mulheres reúnem coragem para dar, do escuro em que estão, o salto para o negro hostil que se lhes afigura começar tudo de novo, o agressor não raras vezes perde a cabeça e o desfecho é fatal. Como sociedade, não oferecemos refúgio e protecção adequados para essas mulheres. E são tantas!!!


Karma ou pensamentos negativos atractores, a verdade é que os agressores existem e as mulheres entram em pesadelos infernais que mal se escondem por detrás de portas e paredes. Os vizinhos ouvem, as marcas são visíveis na cara, nos braços, a quem quer que cruze com elas no autocarro, na escola, no hospital, na mercearia. Prevenir não é só ensinar às mulheres os seus direitos e aos homens os limites dos seus. Se a violência doméstica mata, directamente, mais em Portugal que o cancro da mama, indirectamente ela causa sofrimento a todos, mulheres e crianças e aos próprios homens agressores também; e doenças do foro psicossomático de monstruosa amplitude e pior, é HEREDITÁRIA. É na família que se aprendem e desaprendem o amor, a bondade, a compaixão e o respeito por si, pelos outros e sobretudo pelos mais fracos.


Este é um tema complexo que não se esgota em si mesmo nem se divide a preto e branco em vítimas e agressores. Ele enraíza pelo todo que é o estado mental das pessoas nas faixas mais baixas e alargadas da pirâmide da consciência e de como se vêem a si e aos outros. E é neste "ver", neste encarar dos outros, e digo outros começando nos animais, passando pelas crianças e outras mulheres e outros homens, que está o busílis da questão.


Porque muita gente vê "outro" igual apenas onde vê poder (de retaliação e até de subjugação). Onde vê menos poder, fraqueza, onde alguém está à sua mercê, a maioria dos seres humanos parecem ver apenas uma coisa, um objecto sem necessidades, nem direitos nem vontades. Assim vê uma mulher com a melhor das formações, piedosa e crente, fiel esposa e mãe extremosa, as suas galinhas ou as galinhas que compra embaladas no super-mercado. E noutro grau, com a complexidade dos afectos, assim vê os seus filhos.


Pouco a incomoda perpassar três estalos bem dados na cara do fedelho em frente a toda a gente numa rua para lhe dar a educação como nem a aquece nem a arrefece que um animal tenha crescido num cubículo onde teve toda a vida direito a uma média de menos de 30cm2, que lhe tenham cortado o bico e as asas a sangue frio para que não voasse, que lhe tenham servido farinha feita de hormonas de crescimento rápido, carradas de antibióticos para que resista às infecções causadas pela insalubridade da sua mísera existência, e aproveitamento de restos de outros animais, inclusive de galinhas. A imensa perversão deste processo não lhe é de todo consciente. Nem a ela, nem ao seu homem, nem vai ser assim sem mais nem menos aos seus filhos.


Filhos esses que crescem inseridos neste sistema da vivenciação do poder. Que de pequenos são desrespeitados, abusados, insultados e espancados. Que de pequenos aprendem a abusar, a desprezar, a desrespeitar e a maltratar pessoas e animais, todo aquele que seja indefeso relativamente a eles. E a reconhecer apenas a autoridade e o direito do mais forte, do que lhe possa bater, do cassetete, da multa, da metralhadora.


Assim presenciamos cenas da maior crueldade entre crianças em todos os níveis da escola. E quando nos chegam PPS a dizer que quando éramos pequeninos é que era bom, podíamos espancar-nos uns aos outros à vontade que ninguém chamava o psicólogo, sabemos todos muito bem que quando éramos pequeninos era a mesma coisa, simplesmente hoje levantam-se vozes e consciências e neste jardim à beira-mar plantado, levantam-se instituições de importação, reflexo imposto pela maior consciência relativa doutras nações, pretexto para escoamento de novas profissões na área da psicologia e das ciências sociais e para a criação de novos postos de trabalho, mas estruturalmente carentes duma consciência holística e gerada do interior, quanto à sua função...


A agravar o quadro acresce que grande parte das instituições a quem o estado confere avenças para acudir às sequelas inúmeras da tremenda violência que grassa nas famílias pertencem à igreja católica e, perdoem-me os filiados, mas é como dar o filete a guardar ao gato; já que a referida organizzação é francamente machista, deixa-se pagar para benzer exércitos e armamento, assenta na recusa da vida sexual dos seus ministros para recolher no seu seio as heranças do que amealharam ao seu serviço, esboroa-se em escândalos de pedofilia onde quer que enfie os seus tentáculos e aconselha o abate e consumo de cabritos para festejar a Páscoa como se fosse assim que o lobo e o cordeiro hão-de aprender a pastar juntos! Nenhum produto dos seus ensinamentos poderá alguma vez constituir-se num membro digno de integrar o Paraíso. Ou alguém dos que acreditam nele imagina que no Paraíso haja matanças de porco e caldeiradas de cabrito?


E é esta ordem de coisas, este perpetuar institucional da crueldade para com animais e pessoas, que enche as prisões, os hospitais, as casernas e os asilos. Que cria e enche o inferno na Terra. Não me venham com coisas, é certo que a testosterona é em grande parte responsável pelos 80 a 90 por cento dos agressores homens e por toda a carnificina que tem sido a história (com as Igrejas em Guest Stars). Mas que a testosterona é educável e que os homens são capazes de pensar com mais do que as hormonas, temos também amplamente comprovado por muitos dignos representantes do género masculino. Não precisávamos de nada disso se aprendessemos a respeitar a todos os seres vivos, se soubéssemos reviver uma espiritualidade de facto, afastada dos ensinamentos perversos duma igreja que não está caduca, sempre foi caduca; uma espiritualidade que nos fizesse compreender duma vez por todas que nós e o pai somos um mas não se esquecesse da mãe e de todos os outros seres sencientes.

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