O PORQUÊ DO PICA MIOLOS

Mais do que um espaço, a CasaViva é um meio de provocação. Nunca foi um projecto meramente artístico
ou cultural. Muito menos uma ideia comercial ou pretensão de figurar no mapa da noite portuense.

A CasaViva é um esforço de cidadania, um espaço de activismo, com aspirações a anfetamina que combata a letargia
e a incapacidade de indignação. Para contrariar essa instituída forma de pensar, ser e conformadamente estar e viver.

Se o espaço é temporário, o projecto não quer ser efémero. Nasce, assim, o "Pica Miolos", folha de opiniões
numa resenha de notícias que nos foram chegando e tocando mais profunda ou especialmente.

Seguirá um critério necessariamente tendencioso, como todos os critérios editoriais
de todos os media que se dizem imparciais. Objectivo: picar miolos.

E assim participar na revolução das mentalidades desta sociedade acrítica
e bem comportada e demonstrar de que lado do activismo a CasaViva vive e resiste.

sábado, 8 de novembro de 2008

A corrente parou o rio

Todas as cidades precisam dos seus mercados de frescos e o Porto não é excepção. Mas mais do que isso, como um organismo vivo, a cidade precisa dos pontos vitais que, à semelhança dos órgãos dum corpo, mantêm vivo e activo o seu fluxo de energia de vida.

O Bolhão é um desses centros, com memória, história que se constitui em alma, com carácter e cultura, com funções múltiplas que se desdobram em vidas e vidas, as vidas de dentro do mercado, as economias diversas que o alimentam, a quem o mercado alimenta, próximas, pequenas e familiares, espalhadas pela cintura campestre da cidade, ou mais longínquas... Bombando animação de estruturas antigas que conservam fazeres e saberes, o Bolhão apresenta camadas de significados, instâncias diversas da utilidade, actualidade, tradição e até raridade dos objectos que ali se oferecem a um público a um tempo antigo e novo, habituado ao conhecido ou fascinado pelo insólito...

Tudo isto tem uma riqueza humana e cultural imensa e incalculável em si mesma, para além da sua função alimentadora e reguladora de preços, e, por incrível que pareça, tudo isto esteve a um passo de ser eliminado em alguns dias “do diabo e retroescavadoras”, porque o actual presidente da Câmara resolveu ceder o edifício a uma renomeada empresa multinacional de cambalachos especulativos, a TramCroNe, que pretendia destruí-lo para fazer um centro comercial com habitações de luxo em cima e parques de estacionamento na cave.

E o inesperado aconteceu... A contrariar os últimos repetidos diagnósticos que lhe agouravam a morte em pé, a população do Porto acordou, uniu--se, criou uma plataforma popular a que chamou de intervenção cívica e que surtiu congregar em torno de si um movimento mais vasto de artistas e público em geral que em sábados de animação e festa deixaram bem clara a sua opinião, recolheram um número esmagador de assinaturas e encetaram acções jurídicas que, finalmente, depois da habitual atitude do “quero, posso e mando” de Rui Rio ao dispor do património portuense como se de propriedade sua se tratasse, obrigaram a Câmara a recuar, a denunciar o contrato e a reconhecer publicamente que entregar o Bolhão à TramCroNe teria sido um erro.

Um movimento destes não seria um movimento dos tempos actuais se não fosse aproveitado politicamente pela oposição de Rui Rio. Logo se fizeram sentir, por parte das chefias eleitas, os típicos tiques de privação da comunicação, os comunicados a informar que fizeram ou que assim se iria fazer, sem qualquer vislumbre de consulta à opinião da plataforma. Criticada, fez a chefia eleita saber que tinha sido eleita para isso, que o basismo é inimigo da acção, que importante é o objectivo comum, e não perder tempo com discussões inúteis, uma vez que já se sabe que a fazer há o que é preciso ser feito e as chefias eleitas sabem exactamente o que é preciso ser feito, enquanto os outros não.

Não querendo mais do mesmo, alguns colectivos e muitas pessoas, a título individual, abandonaram a plataforma. Pouco interessou às chefias. Têm sido até ao fim contados por elas como espingardas, quando interessa puxar de galões, neste caso de colectivos, na perspectiva de que um grama de imagem vale um quilo de desempenho.

Este desempenho, tão típico duma certa fauna política, deixou a quem lá andou a dar o litro nos primeiros e definitivos meses de luta um sabor amargo mas conhecido, o triste sabor do desencanto perante o oportunismo e a falta de ética que recorrentemente fazem as suas aparições nestes meandros da vida pública. Mas nada que amargasse definitivamente o doce sabor da vitória conseguida pela união duma população que acordou depois de anos de torpor e se mostrou capaz de dar uma boa luta pelos seus direitos, pela sua vontade e pelo seu património.


O Bolhão está ainda mais decrépito, a coisa não está solucionada, ainda muita tinta vai correr sobre este assunto, mas a cidade está hoje mais rica, precisamente porque agora conta na sua memória colectiva com este reforço da sua a capacidade de organizar-se e sair em defesa dum bem comunal, que ainda sabe que é seu.

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