Uma biblioteca esquecida
A ideia de espaço público constitui a base da democracia enquanto prática do dia a dia. A democracia foi-se desvanecendo e o espaço público, onde as grandes questões eram alvo de decisão por parte das pessoas, foi destruído e “dividido” em fábricas e outros locais de trabalho, centros comerciais, clínicas psiquiátricas ou centros de dia. A vida passa, assim, a ser uma realidade baseada na incessante satisfação de necessidades e não na reflexão, no debate, no livre pensamento, na possibilidade e responsabilidade de decidir sobre o que nos diz respeito.
A cidade é o palco por excelência deste processo de privatização social da vida, em que o contacto com o próximo é cada vez mais determinado pelo que queremos pedir, pelo que precisamos, pelo que temos que dar, pelo que está escrito no contrato de trabalho, pelo que é definido pelas regras de boa educação, pelo que poderei vir a escrever no livro de reclamações. Não pela dupla vontade de exprimirmos a nossa individualidade e de recebermos a individualidade dos outros.
A criação de linhas de fuga e de resistência passou e passa pela organização de novas esferas semi-públicas de discussão e convivência, que funcionem fora da lógica dominante. É com base na ideia de que é possível criar enclaves livres, “mini-sociedades que vivam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei”, como diz Hakim Bey, que ocorrem, ao longo da década de noventa, ocupações de casas e tentativas de organização de centros sociais em Portugal. Apesar de ser um pouco redutor englobar todas estas experiências numa só tendência, podemos afirmar - em abstracto - que foram lugares propícios à espontaneidade e aos acasos da vida quotidiana, tendo possibilitado encontros com pessoas de fora, partilha de saberes, a oportunidade de fazer as coisas de uma outra maneira e, desde logo, equacionar modos de agir no mundo.
O aumento da repressão, aliado à crescente afirmação das cidades enquanto núcleos geradores de produtividade, determinou o fim de quase todos os centros sociais ocupados. Porém, este fenómeno é apenas um pequeno indício de um longo processo de transformação dos centros urbanos em centros de negócios. Casos como o do Mercado do Bolhão, no Porto, e do Grémio Lisbonense, em Lisboa, tornam mais visível a tendência dominante para o desaparecimento de tudo o que destoa do modo de funcionamento empresarial. Exemplos ainda de como, pelo abandono, os espaços públicos se tornam privados, passando a estar disponíveis apenas nos moldes definidos por quem tem dinheiro ou conhecimentos para os adquirir.
Um processo que poderá também ser o que decorre com a Biblioteca do Marquês, uma infraestrutura à espera de cair, esquecida por quem deveria tomar conta dela e fechada, de forma a que mais ninguém lá possa fazer nada.
Será assim tão dispendioso manter aberta uma ludoteca infantil, por exemplo? Ou será que, daqui a uns tempos, vamos todos acordar com a biblioteca nas mãos duma empresa qualquer que fará dela o que mais dividendo lhe der?
Hoje estamos aqui no jardim, ocupando um espaço que é também nosso mas que nos querem roubar, a lembrar que a cidade não é só para ricos e que toda a gente deve ter direito a cultura e diversão. Estamos aqui para dizer que, mais do que nunca, a ocupação e libertação de espaços deverá constituir uma das principais estratégias orientadoras da luta por um mundo mais justo.
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